GATEIRA PARA A DIÁSPORA
Ouvi-o dizer uma vez que, por vezes, compramos um jornal por esta ou aquela notícia, mas depois aquele tão singelo jornal faz-nos trilhar por caminhos desconhecidos. Talvez seja esse uma espécie de algoritmo desorientado de que gosto, por oposição ao hodierno que me propõe o jantar com base naquilo que tive para o almoço. Depois de ter deixado o Le Monde seguiram-se vários projectos como Le 1 (O 1), um jornal de uma só folha desdobrável, que em tempos de atenção permanentemente dividida se concentra, semanalmente, num só assunto; a revista America - nascida com fim à vista: acabaria quando terminasse o consulado de Trump, com a intenção de contar-nos a América ao nível das mulheres e homens que a fazem; a revista Zadig - «Todas as Franças [incluindo a ultramarina] que contam a França», numa perspectiva - nada despicienda - de «repará-la» e, mais recentemente, a revista Légende, aqui com um duplo sentido de «lenda», pois faz-nos reviver uma época através de uma personagem que a marcou, e de «legenda» das fotografias que constituem mais de 70% da revista.
Com grande espírito natalício, o último número de Le 1 põe-nos à frente um espelho para a comunidade que somos e que queremos ser: «Migrantes: somos nós ainda humanos?». Parece-me uma boa pergunta para ser colocada nesta quadra. No editorial diz-se que «no momento em que se acendem em toda a parte as luzes de Natal desvanece o brilho da nossa condição humana». Num outro jornal em papel, Libération (Libertação), co-fundado por Jean-Paul Sartre, leio uma entrevista ao astrofísico David Elbaz. Falando sobre a importância da luz na maneira como o universo se estrutura, diz-nos que «um grama de um ser vivo produz 200 000 vezes mais luz do que um grama de sol!». Porque temos tanta dificuldade em lidar com tal luz? Até temos a tentação de a criminalizar como nos diferentes processos, em curso em vários países, baseados no «delito de solidariedade» (uma contradição nos termos) de que são acusadas pessoas por prestarem auxílio a naúfragos e/ou migrantes em situação irregular. Num aviso à navegação, não há pessoas ilegais. Nisso, a nossa República é exemplar. No pórtico da Lei Fundamental, no seu artigo 1.º, lê-se que Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana. Por conseguinte, essa dignidade é o alicerce da nossa República e da lei que a estrutura (a sua luz). Considerar alguém - um migrante ou outro - ilegal é negar a própria essência da nossa República. É também não deixar que a luz se multiplique.
O israelita Ari Folman realizou o filme de animação Where is Anne Frank! (Onde está Anne Frank!). Na substituição do ponto de interrogação pelo de exclamação já reside todo um programa de acção. Kitty, uma amiga imaginária a quem a menina judia escrevia no seu conhecido diário enquanto se escondia da perseguição aos judeus, reincarna e bate-se, hoje, ao lado dos migrantes que também têm de se esconder (por vezes, também da lei). Um dos legados de Anne Frank será porventura a empatia que as suas linhas possam despertar nas nossas crianças para que se tornem adultos-de-luz. Assim, não deixaremos embaciar a luz da vida, o que desestruturaria o universo. Boas festas e um feliz ano novo!