Essa menina era cerca de um ano e meio mais velha que eu e fazia parte de um clã numeroso de oito irmãos num misto de morenos e louros, mesmo entre gémeas.
As gémeas têm apenas menos um mês que eu, por isso não é difícil de perceber que foi com essas três, sobretudo as loirinhas, que mais brinquei na minha infância.
As incursões pela vereda do Pinheiro adentro, saltando levadas e bardeiras de silvado com os pés como vieram ao mundo, comendo figos e bebras a pingar de maduros e fugindo das lagartixas que partilhavam do gosto pelos frutos era uma constante, sobretudo no Verão. Um dia, por alturas da Páscoa, fomos de foice, vassouras e pás em riste limpar a entrada de uma casa abandonada, só porque o "Espírito-Santo" iria passar. Certamente se os nossos pais nos pedissem, mesmo que com veemência, que fossemos limpar as nossas próprias entradas, o mais certo seria saltarmos mais umas bardeiras de silvado, descalças, antes de nos assistirem a efetuar tal trabalho, mas ali parecia tudo bem. Era a casa dos ferros azuis, assim chamada por ter latadas pintadas dessa cor em cujos tubos rodopiávamos a tanta velocidade quanta a pele das palmas das mãos aguentava.
Partilhámos também a sala de aulas e, naturalmente, a professora, os intervalos, e as descidas alucinantes nos poios baldios, cobertos de erva alta, montadas num cartão que íamos pedir à venda da Senhora Maria.
Raramente descíamos à zona da capela, mas lembro-me daquela vez que lá fomos, alguém tocou o sino, fugimos ladeira abaixo até encontrar um monte enorme de palha fofa mesmo por baixo do muro das Voltinhas, o caminho sinuoso que ligava (e ainda liga) o Lombo de São João ao sítio a sul e, sem demoras, saltámos do caminho para esse monte, numa altura de cerca de um metro, qual cama fofa, até empalhar os fardos, bem…até chegar o dono e nos afugentar dali ameaçadoramente.
As memórias que eu tenho da Teresa são, pois, das primeiras, daquelas pejadas de adrenalina inocente, infantil e saudável. Das gargalhadas sonoras de crianças felizes.
Crescemos e seguimos as nossas vidas. Ela foi para o Funchal, formou família, arranjou emprego. Eu fui para o Funchal, depois para Lisboa e de regresso a casa. Não era frequente nos encontrarmos, mas quando o fazíamos era sempre com troca de enormes sorrisos. Não lhe era difícil sorrir, de resto, difícil era fazer cara feia, porque era linda.
Com frequência encontrava-a a dirigir-se a pé para a casa dos pais, com compras, com o aspirador potente, ou simplesmente para visitá-los. Com os irmãos emigrados era o apoio dos pais, de todas as horas. Tinha autorização para estacionar na minha casa, porque a sua de infância não tem acesso automóvel por uma longa distância e não raras vezes encontrei o seu Nissan no meu lugar, sabendo que estava de volta ao seu aconchego. Estacionava, pois, em frente à garagem e às vezes percebia-a a despedir-se dos pais e voltar para a casa onde formou família.
Quando eu própria formei a minha, ela estava lá, com o seu primeiro menino, feliz pela minha felicidade, com um enorme sorriso nos lábios e uma madeixa vermelha no cabelo loiro.
A Teresa já cá não está, partiu às mãos daquele que foi, um dia, o amor da sua vida e aquele que será, sempre, o pai dos seus filhos. A Teresa não é, apenas, mais um número nas estatísticas nojentas da violência doméstica em Portugal, era uma filha exemplar, uma irmã disponível, uma mãe extremosa e lutadora, uma amiga de luz.
Enquanto a Teresa partia, no último dia do ano maldito, alguém me disse para pedir-lhe perdão e perdoar tudo o que de mau se tivesse passado entre nós. Não pedi, não perdoei. Não havia nada para perdoar, entre nós só existiu luz e aquelas gargalhadas sonoras a saltar os fardos de palha, a escorregar na erva montadas em cartão, a correr pela vereda do Pinheiro com os pés descalços.
Vai em paz, Teresa descalça pelas nuvens, a caminho da Luz.