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Artigo de Opinião

silviamariamata@gmail.com

25/12/2022 06:11

Recebi textos maravilhosos de pais que viveram a sua infância em várias localidades da nossa ilha. E tenho pena de não os ter guardado! Mas não se pode guardar tudo! Fiz apenas uma exposição na sala com os textos que recebi e fiquei vaidosa e feliz. Já se sabe que houve colegas que criticaram, porque aquele pai, que até era professor, escreveu à mão e não no computador, e que aquela mãe que era doméstica escreveu com tanto brio e cuidado! O que importa é que os alunos ficaram orgulhosos com o trabalho dos pais, ali expostos no placar junto ao quadro, à vista de todos! E é preciso coragem para escrever e expor! Quem escreve escreve-se! Ora, aí está uma verdade!

Por esse tempo, meu pai, já meio trôpego das pernas, pedia-me vezes sem conta para eu ir armar a lapinha em cima da mesinha da televisão para ele poder olhar para aquela preciosidade a tarde inteira mais minha mãe. Nesse ano, as coisas já não ficaram tão bem compostas, porque o Menino Jesus se tinha partido numas arrumações. De modo que meu pai foi à cidade e comprou um Menino Jesus novo no Sino, naquela loja atacada de coisas até à boca da rua, pelo chão, por cima da porta, tanta coisa pendurada não sei como, banheiras de todos os tamanhos, carros de plástico, triciclos, bolas, cântaros de plástico, panelas de alumínio. Eu sei lá sequer mais o quê… Ninguém se mexia à vontade lá dentro.

Num dia, entre tanto trabalho da escola, lá tirei um belisquinho de tempo e fui por ali abaixo armar a lapinha a meu pai! Quando eu comecei a pôr as imagens no seu devido lugar e fui desembrulhar o Menino Jesus novo, reparei que aquele Menino era enorme para ser filho da nossa Nossa Senhora que era uma imagem pequenina a condizer com a do nosso São José! Em silêncio, eu fui ao pé de minha mãe e mostrei-lhe as duas imagens, o Menino e Nossa Senhora. Minha mãe deu uma gargalhada com aquele despropósito que meu pai também se riu! E quando chegava alguém para ver a nossa lapinha e fazer uma visita, meu pai caçoava e dizia que já não enxergava bem e que tinha tirado mal as medidas ao Menino Jesus! Pois claro! É assim que se dá a volta às coisas!

De modo que nesse ano, voltando à escola, eu quis saber sobre os preparativos do Natal dos meus alunos e pu-los a escrever! Que maravilhas saíram dali! Prodígios que eu aprendi! Todos contaram coisas e um grupo registou tudo o que foi dito! E como eles foram exigentes! Aqui fica o registo.

Vou começar pelo Francisco. Ele tem sorte, porque vai para casa dos avós nos Açores. O avô dele tem uma grande propriedade com cavalos e com vacas. O Francisco gosta muito de lá ir. Esse está arrumado. Passa o Natal de forma diferente a tratar dos animais naquele paraíso de verdura. A Madalena disse que não sabe se é normal ou não, mas que gosta muito da prenda da avó, que é sempre a mesma cada Natal, tanto para ela como para o irmão, um pijama e umas meias muito quentinhas. A Leonor disse que a avó lhe dá sempre uma camisola nova de lã que lhe pica muito. A Ana Vasconcelos escreveu tantos textos. Não sei como tem tanta imaginação. Cada um mais completo do que o outro. E eu gosto e lembro que os poetas dizem que o segredo é saber olhar e estar encantado ou desencantado e dizê-lo como se fosse música.

Mas a história que nos deu mais vontade de rir foi a história da Francisca. Essa é um verdadeiro conto de Natal. Foi feita uma mistura com todos os ingredientes, um pouco de cada colega e saiu uma história cinco estrelas. Os ingredientes, a bem dizer, foram as categorias da narrativa, aquilo que é preciso para se escrever uma história: o tempo, o espaço, as personagens, o narrador e a acção.

Então, passa-se a história da seguinte maneira: era já quase Natal. Na casa da Francisca, estavam todos preocupados com os afazeres e preparativos para a época festiva. Sim, porque as festas dão trabalho. A avó Matilde já tinha começado a amassar os bolos de mel e a fazer as broas. Era uma tradição de família e ela não queria que se perdesse. Bem tentava convencer a Francisca a aprender com ela, mas a Francisca tinha muitos testes para fazer na escola na época de fim de período que não podia nem conseguia pensar em ocupar a mente com mais aquela preocupação. Que ficava para o ano, dizia. De vez em quando lá ajudava a enrolar uma ou outra broa, mas era preciso algum jeito e a avó tinha pressa, porque o trabalho era muito e era precisa muita paciência para os jovens, o que já lhe ia faltando. Pena! Bem, menos mal que "muito ajuda quem não atrapalha", era o que dizia a avó da Helena, outra aluna da turma! A mãe da Francisca, a Teresa, tratava das limpezas e dos enfeites da casa, tratava ainda de comprar os presentes para todos e já era muito trabalho. Sim, toda a gente fica louca nas lojas e centros comerciais. Toda a gente quer comprar tudo e ninguém se mexe lá dentro. Até dá dores de cabeça com tamanha fúria de comprar e de vender. Toda a gente rabugenta, a pensar e pensar no que há de oferecer a este e àquele, a deitar contas à vida, a usar o cartão de crédito e seja o que Deus quiser! O pai da Francisca, o Pedro, colaborava com a ida ao supermercado comprar as bebidas e as carnes para o almoço do dia de Natal. A carne-de-vinho-e-alhos tinha de ser preparada numa boa marinada de vinho branco, vinagre e alho que podia ficar até três dias antes do dia do Natal. Ocupava-se também de encomendar uma galinha caseira lá para os lados das Carreiras, na subida para o Poiso, onde há uns poios de erva bem verdinha, antes de se chegar ao 21. Mais saborosa e mais caseira não havia em sítio nenhum. Faria uma boa canja para depois da missa do Galo, à meia-noite do dia 24 para o dia 25 de dezembro. Consolo maior não encontrava ao longo de todo o ano. A tal galinha não podia faltar. Que faltasse tudo, menos a galinha, dizia ele como numa sentença. Portanto, dizia-se, a Francisca e a irmã, a Joana que tinha nove anos, faziam recados, penduravam as bolas no pinheirinho e depositavam os presentes para as pessoas grandes junto ao tronco da árvore no chão na sala.

As coisas repetiam-se cada ano sempre da mesma maneira mais coisa menos coisa como já foi atrás descrito, mas cada ano crescia uma magia renovada. A Francisca já não acreditava no Pai Natal, mas a Joana acreditava. A Francisca fazia um esforço para não dizer a verdade à irmã. Todos diziam que era bom manter a magia do Natal o mais tempo possível, que fazia bem às crianças. Sem discutir, a Francisca obedecia aos mais velhos, mas bem lhe apetecia quebrar a regra e viver a verdade com a irmã em plenitude. Não era a mãe que dizia que o Menino Jesus foi o Maior dos meninos e que não tinha com que se abafar quando nasceu? Então, qual era a lógica de receber presentes caros de um Pai Natal que não existe? Não se podia trocar esta regra pela regra verdadeira? Enfim…

Nesse Natal, acabada a família de chegar da missa do Galo, todos quentinhos nos seus gorros e botas de cano alto, com a lembrança dos cânticos de Natal a bailar na boca, o ato de Natal a reviver na cabeça, a paz interior e as boas intenções a bater forte no coração, a avó serviu com toda a alegria do mundo a canja da tal galinha caseira. A toalha de azevinhos da mesa da cozinha também era nova. Tudo fresco, areado e polido! Um ambiente mágico como só no Natal! O pão, igualmente caseiro, pão cozido no forno a lenha da padaria da Mariazinha, ou pão de uma casa particular do Porto da Cruz, cheirava que era um regalo, num cestinho de vimes no meio da mesa com um pano de linho com uma barrinha de croché, lembrança de uma prima da avó. Todos comiam e conversavam conversas de harmonia e simpatia. Era um tempo de sintonia, era um tempo de paz e de tréguas.

O pai, o Pedro, depois de ter agradecido a Deus a refeição, ordenou à Joana que colocasse numa bandeja as bolachas para o Pai Natal que viria ali dali a pouco lhe deixar o presente de Natal. Ela tinha-se portado mais ou menos durante o ano, certamente o Pai Natal não se deslembraria dela. Disse também para ela não se esquecer do copo de leite. O Pai Natal precisava de se alimentar bem. Tinha muitos presentes para distribuir por todos os meninos do mundo. A Joana levantou-se da mesa e foi solícita obedecer ao pai. Arranjou a bandeja, colocou um pratinho com motivos de Natal com as bolachas com pepitas de chocolate - o Pai Natal deve ser guloso, a ver pelo seu físico - e o copo de leite, de vidro fino e transparente igualmente com motivos de Natal. Deixou a bandeja na mesinha da sala, onde estava armada a árvore com as luzinhas e os presentes para os adultos por baixo. O pai avisou: "Vai dormir. O pai vai abrir um belisquinho a janela para o Pai Natal poder entrar." Era assim naquela casa por não haver lareira. Na ilha da Madeira, no sul, as lareiras são quase desnecessárias pelo clima ser temperado. Deu um beijo nas filhas e piscou o olho à Francisca.

Foram ambas dormir. Mas a Joana estava inquieta. Não sabia se tinha dormido ainda ou não, mas passado algum tempo, pressentiu um leve roçar de papelada e de cortinados na sala. Saltou da cama num pulo. A Francisca dormia a bom dormir. Abriu a porta do quarto e tudo às claras, viu o seu pai em pijama, o cabelo meio desgrenhado, o comando da televisão na mão, sentado no sofá a comer as bolachas que ela tinha tão carinhosamente colocado ali para o Pai Natal de verdade. O pai aproveitava e via televisão. Já havia mais presentes debaixo da árvore de Natal. Eram certamente os dela, supostamente deixados pelo suposto Pai Natal, que afinal era o seu pai, o Pedro, que comia as suas bolachas preferidas. Num ápice, tudo compreendeu. Já andava com a pulga atrás da orelha, mas foi de facto uma grande desilusão! Menos mal que um dia tinha de ser! Mas assim uma pessoa até fica decepcionada com estas mentiras dos adultos! O pai ficou um pouco desarmado com os olhos entre atónitos e inquisidores da sua filha Joana. Que se pode dizer a uma criança a quem se mentiu tanto? Mas a Joana, quebrou o gelo e correu para o pai de braços abertos. O pai aceitou aquele abraço e sem mais palavras, naquele silêncio de calor, selaram a sua amizade para a vida. Sim, porque o amor da família, o amor de um pai e de uma filha é para a vida e não será um Pai Natal que não existe que vai separar os dois.

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