Entendo agora porque uma pedra guarda o calor e as minhas mãos hão-de entrar no seu corpo pelo lado mais inverosímil da noite. É como dizer que milagre é só mais um nome para devoção, mesmo que aquela ínfima é fina parte da noite seja afinal verdade. Mesmo que uma pedra seja um outro nome para fim ou para o frio. A ruína firme de um corpo a atravessar o íntimo nevoeiro.
É por isso que aqui vim, para sentir a árvore que acende o fogo; para abandonar este corpo que não dói ao toque da neve mais primitiva. A minha mão tem a largura da fome não gerada, treme na linguagem pura de um animal distante e sobrecarrega o medo de lugares que estão ainda por encontrar. Sim, a ternura é a outra face do medo; é assim que começamos a amar - um homem, uma mulher, um filho, Deus. O silêncio. E também o medo.
Antes de adormecer guardo os meus pés dentro do murmúrio da terra. Como na infância, hei-de subir antes de dormir, ou inventar uma oração que me reconstrua religiosamente, com a endurecida pele do basalto, como se Deus existisse. Toda a ternura começa sempre no fim de alguma coisa, uma luz obscura que apaga o último fio de um desejo antigo, uma trégua na alegria.
Mas não foi por isso que eu vim. O meu corpo havia já habitado outros nevoeiros antes da fome mais profunda, e eu não sabia senão caminhar sobre outras súbitas pedras, sobre outro súbito corpo embevecendo a ave tão alta. Que duríssimo assombro, o seu estrondo de silêncio contra a mácula do céu.
As minhas mãos podem ter chegado antes de mim; antes do fim de alguma coisa, sem rumo ou preparação, apenas os meus dedos gelados sobre o calor guardado no interior da pedra.
Seria isto a infância, uma casa azul guardada no fundo do mar, um lugar ainda por encontrar, o coração largo de um cardume onde todas as mortes perderiam a velocidade.