A jornada começava bem cedo, descíamos ao Livramento, sítio da Ponta do Sol, onde existiu um cinema (às vezes a minha mãe levava o carro até a Ribeira Brava e apanhávamos lá o transporte coletivo. Ela tinha um receio infundado de conduzir na cidade, mas como o futuro nos ensina, acabou a ir e voltar diariamente, conduzindo, quando mudou de profissão, mas não ainda de morada).
No Livramento atentávamos nos automóveis ligeiros de passageiros amarelos com uma risca azul, na esperança de ter sorte e vaga numa "rancheira" que nos levaria mais rápido e com maior conforto.
O dia em que a minha mãe, mulher mais à frente que o meio do onde vivia, foi mandada do lugar do pendura, numa "rancheira" para trás para dar lugar a um humano cuja prioridade advinha apenas e só de ser homem deve ter sido o dia em que perdeu o receio de levar o carro à cidade, tal foi a indignação.
Quando a sorte de conseguir vaga na "abelhinha" não bafejava, a alternativa era embarcar na camioneta de bancos de napa cor de vinho e pretos, com costas forradas a platex e uma pega nojenta preta e seguir caminho.
Quinze minutos na Ribeira Brava para paragem técnico-hidráulica estavam garantidos, respirar, ver o mar e andar, o caminho seria verdadeiramente longo.
Subia a Cruz, atravessava o Campanário, Quinta Grande, descia o Estreito, atravessava Câmara de Lobos e quando o sistema digestivo começava a reclamar, apareciam as Duas Torres em sinal de esperança e reta final.
Saltávamos na Avenida do Mar e íamos à nossa vida, geralmente ao médico, medir os pés com ferros para atualizar as botas ortopédicas (a moda corretiva da altura, hoje são os aparelhos dentários, endireitaram-se os pés, entortaram-se os dentes, mudam-se os anos, mudam-se as modas, até no esqueleto), comprar material escolar na extinta papelaria Figueira, ou se se estivesse a meados da década de oitenta, arrastar as tais botas pelo chão, rua dos Ferreiros abaixo porque vira alguma boneca interessante na "Estilográfica" e dava um "show" de rua à maneira ao som dum alto e audível: "_mas, eu queria!!!!". Ai, a minha mãe, na altura ainda me conseguia arrastar, bons tempos, duraram pouco.
Já para meados da tarde, com sacos e exames nas mãos, era tempo de entrar na "Indiana", a original, comer um pastel de nata e dar um pulo à Igreja do Carmo para "mandar rezar missas". Não percebia aquela de pagar para cumprir a religião, ainda não percebo, há coisas que nunca mudam. Graças a Deus.
Pelas 18 horas, zuníamos rumo ao parque Almirante Reis onde vários caixotes de ferro retangulares aguardavam na diagonal os passageiros para outra jornada.
"_Procura o que diz "Carvalhal"". Entrávamos no "Carvalhal", pelas janelas pequenas vendedores faziam passar fruta e outros aperitivos. Os mesmos que seriam devolvidos à natureza avivando as vinhas da subida do Estreito ainda mal digeridos e aromatizando toda a camioneta. Era o suplício em sentido oposto. Passando o restaurante "Vista Alegre" a mesma esperança das "Duas Torres" renascia, a paragem técnico-hidráulica repetia-se. Com todos os sistemas humanos do avesso, duas horas e meia, senão três, depois descíamos nos Canhas e atravessávamos a vereda. Estávamos em casa. Fomos à cidade. Cinco horas de estrada.
Este era o meu percurso Ponta do Sol/Funchal e vice-versa, mas havia os que seguiam para a Boaventura, para a Ponta do Pargo e ainda me lembro de colegas de Santana faltarem às primeiras aulas de segunda por terem ficado retidas na neve, no Poiso… Conseguem imaginar "millenials"? Meu filho? Foi ontem… Assim parece.