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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

16/06/2023 08:00

Quando chegou a velha, já viúva há muito tempo, Maria do Céu costumava dizer que o pai do seu filho único, um rapaz de pele alva e olhos azuis que embarcou antes dos 15 anos e desapareceu no mundo, era um querubim chamado Boreel. Quem a ouvia dizer isto ficava deveras espantado, não tanto pela alucinação da história, mas pela inusitada erudição que revelava ao pronunciar tais palavras: Querubim Boreel.

Era, de facto, uma coisa incrível na voz de uma mulher tão rude e ignorante, quase mentecapta. Por outro lado, lamentavelmente, não há registo histórico do acontecimento, nem pessoa viva que dele possa prestar testemunho. Como se sabe, são os vivos que contam as histórias, de modo que esta, como não tem narrador para trás, talvez seja falsa.

Maria do Céu acabara de se casar com um indivíduo chamado Pedro. Moravam no Lombo do Meio. Ela não tinha graça. Era uma moça baixinha, com os braços demasiado compridos, deslavada e sem luz. Tinha os olhos pretos, grandes e saídos como os de um peixe sombrio. Pedro também não devia nada à beleza. Era um tipo seco e esquelético, fusco e fosco, todo encardido. Além disso, faltava-lhe o dedo mindinho na mão esquerda.

O casal vivia na mais abjeta pobreza, lá numa das últimas casas da montanha. Podemos até dizer que mal sabiam falar e facilmente eram confundidos com atrasados mentais. Trabalhavam os dois na agricultura, mas para senhorios distintos, ambos ingleses. Só estavam juntos à noite e aos domingos.

Iam os dois de braço dado à missa, mas não os deixavam entrar na igreja porque cheiravam muito mal. Estavam sempre sujos ou mal lavados.

Pedro bebia todos os dias em excesso. Maria do Céu, por seu lado, só bebia em excesso aos sábados. Bebiam vinho e aguardente.

Além do amanho da terra, que os alquebrava e subjugava como bestas, não sabiam fazer nada. Nem sequer sabiam lavar a cara ou as mãos a modos. Maria do Céu mantinha o casebre constantemente nojento e revirado do avesso. Não sabia cozinhar, não sabia remendar, não sabia arrumar a cama. Pedro não sabia ajudar a mulher, mas também não se enervava com ela. Não era dado a violências e o álcool, por incrível que pareça, não o empurrava para aí. Aceitava sem queixa as artes tortas da mulher e dizia sempre que a comida estava boazinha.

O querubim Boreel - alto, loiro, branco - visitou Maria do Céu para a conhecer.

Ela estava agachada ao pé do catre. Tentava retirar o penico, mas parecia que o penico tinha tomado a liberdade de ir mais para o fundo. Embora o seu braço fosse bastante comprido, não o conseguia apanhar.

O anjo cobriu-a e ela deu um grito, um grito desesperado. Mas depois não fez mais nada. Ficou ali calada e imóvel, como quem não quer chamar a atenção dos vizinhos. Boreel pôs as pernas de Maria do Céu nos ombros, uma perna em cada ombro, e possuiu-a. Maria do Céu ficou sempre a olhar para ele em silêncio e os seus olhos pareciam maiores, mais pretos e mais saídos, mas não havia neles sofrimento, nem sequer havia espanto, apenas uma ligeira dilatação, um brilho mais líquido.

Antes de partir, Boreel tirou do pescoço um colar de ouro, com uma pequena medalha oval, também em ouro. Entregou-o a Maria do Céu e disse:

- Esta é a marca do meu filho.

Maria do Céu olhou para a medalha e viu uma mulher com rabo de peixe. Uma mulher jovem, de cabelo muito comprido, com os seios despidos e um enorme rabo de peixe. Aquilo deu-lhe vontade para rir. Uma mulher nua com rabo de peixe!

- Cruzes, credo!

Riu alto e de olhos fechados e o riso levou-a por uma vereda acima, entre fetos e pinheiros, até um lugar onde só havia sonhos. Depois, abriu os olhos e viu que estava sozinha.

Quando Pedro chegou a casa, Maria do Céu já tinha escondido o colar de ouro.

Pedro saudou-a erguendo a mão sem o dedo mindinho e disse que pelo caminho tinha visto um homem com asas. Maria do Céu respondeu que ainda agora tinha visto uma mulher com rabo de peixe. Riram um do outro. Depois, foram para a cama e fizeram-no como doentes mentais, ou talvez como animais.

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