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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

6/10/2023 08:00

A manhã de Quarta-feira de Cinzas do ano 2012 foi terrível. Regra geral, as manhãs no bairro onde eu vivia naquele tempo, na Alta Zambézia, eram terríveis, mas a de Quarta-feira de Cinzas do ano 2012 foi particularmente terrível. Para começar, dormi mal e acordei ainda pior. Acordei ao som daquilo a que os meus vizinhos chamavam de música: um ruído abjeto, sem vergonha, altíssimo, ensurdecedor. Eu adoraria acordar ao som da música tradicional africana, mas assim não. Parecia uma discoteca.

Pum-pum-pum.

Ratapum-pum-pum.

Um inferno.

Eu sempre achei que a música de discoteca se destina a embrutecer as pessoas, afastando-as da possibilidade de pensar e remetendo-as para as coloridas margens da estupidez. Posso estar enganado, claro, mas sempre considerei que o barulho e a folia destravada são agentes da opressão e do obscurantismo disfarçados de libertários e redentores. Por isso, nunca aceitei de bom grado a ideia de que viver em constante festa seja sinal inequívoco de aproveitar bem a vida. Antes pelo contrário.

Seja como for, eu nunca gostei muito de discotecas, além de que os porteiros me barravam sempre à entrada, não sei porquê, talvez pelo meu aspeto. Fora da ilha, sempre entrei em qualquer lugar sem problema, mas aqui não. Quando era miúdo, então, era uma desgraça. Raramente me deixavam entrar, mas de vez em quando lá conseguia.

Pum-pum-pum.

Ratapum-pum-pum.

As pessoas falavam-me ao ouvido alto, aos berros, mas eu não entendia nada. Contudo, abanava a cabeça que sim e depois falava eu, também aos berros, igualmente sem perceber o que estava a dizer. Uma alucinação. Uma bebedeira de caixão à cova. Era assim a minha vida na discoteca, uma espécie de passeio noturno num manicómio com a instalação elétrica em curto-circuito.

De certa forma, o som e o ritmo da música coincidiam com o batimento do meu coração e isso operava em mim uma espécie de regresso ao animal primário. Até certo ponto, esta transformação, sempre acompanhada por uma dança frenética, seria positiva se por acaso a floresta estivesse ali à mão de pegar para nela me perder. Porém, a selva eram os outros. De modo que quando a ventania acalmava, sobrevinha o vazio, o oco, o sem-nada do ser. E eu desejava ardentemente fugir, partir, desaparecer.

Pum-pum-pum.

Ratapum-pum-pum.

Foi assim na manhã de Quarta-feira de Cinzas do ano de 2012, na Alta Zambézia.

Acordei ao som de música de discoteca - aquela infame batida - que brotava da casa do vizinho de cima. Como sempre, a música estava altíssima e ainda nem sequer eram seis horas. Quase todos os dias acontecia o mesmo. Quando não era com a música de discoteca do vizinho de cima, o mais rico da zona, eu acordava com a música de discoteca do vizinho de baixo, o mais pobre de todos. E quando não era com a música de discoteca de um ou do outro, eu acordava, então, com a música de discoteca do vizinho da parte de trás ou com a música de discoteca do vizinho da frente ou com a música de discoteca do vizinho lá do fundo, ou lá do outro lado da colina.

Também acontecia que quando um deles desligava a sua horrenda e ignóbil música de discoteca, o outro ligava automaticamente a dele, como se estivessem combinados, e assim sucessivamente, de modo que, às vezes, dava-se o caso de eu passar vinte e quatro horas cercado de música de discoteca.

Pum-pum-pum.

Ratapum-pum-pum.

Um inferno.

Na Quarta-feira de Cinzas de 2012 aconteceu precisamente isso às primeiras horas da manhã. Achei-me, de repente, mal dormido e cercado de música de discoteca. Pouco a pouco, porém, o meu coração começou a bater ao mesmo ritmo da música e agora a selva estava ali à mão de pegar, mas o que me sobreveio foi mesmo o vazio, o oco, o sem-nada do ser.

E, uma vez mais, eu quis ardentemente fugir, partir, desaparecer…

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