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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

8/09/2023 08:00

Todos os dias eu digo à Pat que a amo e digo-o várias vezes ao dia, às vezes intercalado com outros dizeres sobre assuntos que a maçam e amassam, coisas que não lhe interessam para nada, ideias e opiniões diametralmente opostas às suas, temas tão profundos para mim como ridículos para ela, que potenciam irritações e brigas, ainda por cima com palavrões terríveis da minha parte a compor o ramalhete da argumentação, e ela volta e meia baixa os braços e diz:

- És cru.

É o que ela diz quando insisto em designar os factos pelo nome, ou pela alcunha, conforme aprendi em miúdo na rua, falando em privado como já poucos se atrevem a falar em público - incluindo eu -, porque o risco e o medo de se ser trucidado pela correnteza da moda, que voga ruidosa e dogmática em todas as direções, é enorme e num instante uma pessoa simples e honrada fica feita em farrapos por causa de duas palavras malditas ou mal atremadas, mesmo quando essas foram, de facto, as palavras que se disse com toda a maldade.

Ou seja, um gajo passa a ser isto e aquilo e aqueloutro - tudo do piorio - só por ter dito uma coisinha qualquer sem eufemismos, de modo que o melhor a fazer é guardar a nossa relação mais fraturante e frustrante com o mundo e os outros - sobretudo com os outros - para exposição exclusiva na intimidade do lar, onde, no meu caso, a crueza da palavra é sempre compensada pela nudez do amor.

Por exemplo, no fim duma conversa, em que me saíram tantas coisas horríveis da boca para fora, eu era assim:

- Puta que o pariu.

E ela era assim:

- És cru.

E eu era assim:

- Amo-te.

E ela era assim:

- Eu também te amo.

Rimos um para o outro.

Além disso, a Pat acha que a expressão ‘puta que o pariu’ é anacrónica e farta-se de gozar sempre que a utilizo, dizendo que pareço um velho daquele tempo a falar, o que, de certa forma, desfaz a minha fúria e, simultaneamente, me remete para palavrões mais pesados, dum género que não posso reproduzir aqui, pela mesmíssima razão pela qual também não posso dizer tudo o que penso e sinto e sangro sobre o mundo e os outros, a não ser recorrendo a figuras de estilo, filosofias intrincadas, ficções e autoficções, que é como quem diz à bela e tremenda arte da autocensura.

(Faça-se uma vénia…)

Há dias, um amigo deu-me uma dica para contornar o problema, explicando que para bom entendedor meia palavra basta, pelo que, num caso destes, tratando-se de palavrões, se eu escrever ‘cara’, o leitor obviamente vai entender o resto.

Pois então:

- Cara.

(Sem ofensa, isto é a brincar.)

Felizmente, tenho uma natureza contemplativa e sou capaz de passar horas e horas na varanda ou noutro sítio qualquer a ver o dia rodar, enquanto espero pela Pat ou por mim mesmo, atitude que me conduz a todos os países do ontem, do hoje e do amanhã, numa viagem sem estrada, vertiginosa, até que o cansaço me verga e aquieta e amansa e me faz regressar a casa em paz.

Esta é a minha condição.

Aqui, do meu posto de observação, tão altaneiro como subterrâneo, às vezes com vista ampla e clara, outras vezes baça e afunilada, vejo o tempo e a distância que vai até ao infinito do meu ser e assumo que jamais seria outro, jamais, nem que andasse agora com uma tábua amarrada nas costas - queixo erguido, peito para fora, barriga para dentro - em vez de andar assim meio curvado com o peso de Deus e do Diabo, nem que tivesse 10 milhões em vez de 10 tostões, nem que dissesse eternamente ‘puta que o pariu’ em vez de dizer ‘amo-te’ todos os dias várias vezes ao dia, nem assim eu seria outro, de modo algum, jamais.

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