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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

25/08/2023 09:53

Eu aprendi a escrever a-e-i-o-u e a juntar consoantes às vogais para criar palavras encantatórias como pá, pé, pi, pó, pu, e outras que tais, como pua, pia, pau, mais ou menos um ano antes de ingressar na primeira classe, na escola da Quinta das Freiras, em Santo António, e também aprendi a desenhar os números de 0 a 9 em superfícies picotadas à mão, porque a minha prima Ana estava a tirar o curso de professora primária e a minha mãe, em conluio com a minha tia, fez questão que me ensinasse, porque era bom para mim, que ficava já a saber alguma coisa, e para ela também, como treino na profissão.

Com os números, nunca me entendi. Burro p’a caraças! A verdade seja dita.

Já com as letras, foi amor à primeira vista, mesmo apesar dos erros ortográficos e dos despistes na sintaxe, que ainda hoje me perseguem. Coitado de mim! Mas, bem vistas as coisas, alguém conhece algum grande amor sem falhas, imaculado, inocente do princípio ao fim, como uma flor tímida numa floresta virgem? Eu cá não conheço. Por isso, não tenho qualquer pudor em afirmar que amo a escrita.

Mesmo quando a flor se torna venenosa, eu digo:

- Amo-te!

É o lado tóxico do meu amor…

Julgo ter feito a primeira composição algures entre os sete e os oito anos, mas não me lembro de qual foi o tema. Deve ter sido sobre a fazenda do meu avô, a ribeira e os sapos, a sombra das árvores e as férias de verão, qualquer coisa assim, qualquer coisa com terra e água e vento e sol, não sei. O certo é que tudo começou aí, sendo que tudo é apenas isto que estão a ler agora. Nada mais.

Cadernos e folhas soltas com textos da minha autoria avolumaram-se ao correr dos anos no meu quarto, mas poucos chegaram à atualidade, porque, pelo caminho, eu enlouquecia com frequência e deitava-lhes fogo, de modo que, a certa altura, deixei de guardar esse material.

Sempre acreditei que só a escrita me poderá salvar, mas nunca tive fé naquilo que escrevo.

Os últimos blocos datam da época em que vivi em Moçambique, entre 2008 e 2013, e estão arrumados num caixote juntamente com outros, que remontam às décadas de 80 e 90 do século passado e que escaparam às fogueiras.

Volta e meia, folheio-os à procura de tema para as crónicas, que serão muito provavelmente tudo o que vai sobrar da minha escrita quando eu morrer, e isso constitui um encontro extraordinário com o meu passado, de onde saltam fadas e fantasmas, pessoas que já nem sei quem são, amores traídos, amigos perdidos, pensamentos, reflexões, relatos de dores e de estados de espírito nos quais predominam a tristeza e solidão - como sempre -, descrições de consultas por causa de doenças inexistentes, datas que assinalam acontecimentos marcantes, como a morte da minha mãe, e outros triviais, como uma simples ida à praia, a narração de conversas com empregadas de balcão, a explanação do desejo reprimido e o arranque de histórias sem continuidade, como esta, por exemplo:

Primeiro foram os olhos dela que me fascinaram. Eram verdes, dum certo verde que de vez em quando vejo por aqui, em sonhos, quando o sol brilha através da folhagem. Eu tinha adormecido no meu lugar, no barco que nos levava de férias à outra ilha. O barco era um catamarã e fazia o percurso em cerca de hora e meia. Eu era muito novo e não enjoava no mar. Mas a viagem, mesmo com bom tempo, era terrível e havia sempre gente a vomitar por todo o lado. Eu, porém, estava no meu canto a dormir sossegado. Depois, abri os olhos e vi-a à minha frente. Vi os seus olhos verdes cheios de luz e os seus olhos verdes cheios de luz não deixavam margem para dúvidas.

Eu disse:

- Olá.

Ela respondeu:

- Olá.

Fecho o caderno e penso: O que seria de mim se não tivesse aprendido a juntar as consoantes às vogais para criar palavras encantatórias e outras que tais sem encanto nenhum?! Meu Deus, o que seria de mim sem a paixão deste amor imaculado?!

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