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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

22/12/2023 08:00

Naturalmente, nesta época, como em todas as épocas do ano, mas sobretudo nesta época, eu sinto muito a falta da minha família, do seu aconchego, do seu amor incondicional, sinto muito a falta do carinho e da atenção com que todos me embalaram desde que tomei consciência de mim até ao fim de cada um, apesar das brigas e dos amuos, e assim permanecem no meu coração, mesmo depois da última vez em que estivemos a sós, eu e eles, mesmo depois do último Natal e Fim do Ano todos juntos, como sempre a saltar de casa em casa para ver a lapinha e as decorações, antes de a morte nos quebrar com tristeza e saudade, todos juntos a saborear o bolo da tia Teresa e o chá preto e as sandes de galinha, antes de o abandono tomar conta do tempo das nossas vidas, todos juntos em casa da tia Alice para ver o número do ano mudar na encosta de São Gonçalo e o fogo-de-artifício explodir à meia-noite cheio de cor no céu da baía, antes de a ruína invadir o espaço dos nossos percursos roubando-lhes para sempre o inebriante cheiro a fresco feito de cera Búfalo e licor de tangerina, todos juntos outra vez antes de tudo ser silêncio e solidão, antes de tudo ser aqui, agora, eu e a minha irmã e a tia Conceição senil no lar e o primo Victor do outro lado da ilha.

A família inicial.

Somos nós, há muito sem avós, sem mãe, sem pai, sem tias, sem a prima Ana, sem o tio Humberto, sem as visitas habituais de fora, outros familiares, os vizinhos, sem a tradicional troca de prendas só para lembrar a quadra e assinalar o nosso afeto uns pelos outros – somos nós, a família primordial.

Naturalmente, nesta época, como em todas as épocas do ano, mas sobretudo nesta época, eu sou outra vez menino e quero um brinquedo no sapatinho, talvez um carrinho, um barquinho, sei lá. Para dizer a verdade o que quero mesmo é acordar com a ansiedade de não saber o que será e quero participar em todas as etapas que marcam o mês, arrumar a casa, ir às compras na confusão da cidade, construir o presépio, enfeitar o pinheiro, ir à missa do galo, comprar cigarros Rothmans King Size avulso na venda do André e lançar bombas de garrafa e bombas de barril, acender velas ao Menino Jesus, estender a gambiarra e ficar surpreendido com o pisca-pisca das luzes no escuro da sala e depois adormecer embalado no sussurro de vozes familiares, vozes quentes, vozes que me protegem.

Sim, quero ser outra vez eu antes do que sou agora, antes do homem preso no seu labirinto. Quero ser eu antes de usar a escrita para cavar este buraco na terra da minha alma, na pedra do meu ser, no vazio do meu desejo à procura de areia pura, areia fina para construir o espelho perfeito da minha existência. Quero ser eu antes de me pôr a trilhar este caminho de luz e sombra no oco da poesia, este caminho de letra e palavra que diariamente percorro para exibir tudo o que ficou para trás, tudo o que persiste dentro do esquecimento, tudo o que vive no silêncio do passado e também é amor, também é horror, é dor, é flor, também é hoje, aqui, agora, também é sempre e jamais, do fim ao infinito.

Naturalmente, nesta época, como em todas as épocas do ano, mas sobretudo nesta época, eu regresso a mim, enfim, regresso à casa que sou pela mão dos que me amam e sigo de olhos fechados o sinal de quem amo e torno à raiz que me sustenta desde que cheguei ao mundo, já lá vão cinquenta e seis anos e então posso afirmar sem qualquer hesitação que sou como sempre fui. Sim, sou como sempre fui e no cansaço de tanto ser, no cansaço de tanto escrever, neste cansaço de tanto desaparecer, tanto morrer, fico tão feliz por ainda acreditar, tão feliz por ainda amar.

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