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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

8/03/2024 08:00

Irene espreita o relógio de parede por cima da cabeça do professor e, enquanto espera pelo último salto do ponteiro grande, parte para longe. Agora, está à beira do Cinema Águia e a Avenida Eduardo Mondlane apaga-se à sua frente, tão extensa e cheia de gente.

– Dá-me lá dinheiro, tio.

O homem para e fica a olhar para ela.

Irene recua um passo, criando espaço para que ele realize os pensamentos e também para ter campo de fuga se for necessário.

– Pelo menos dá-me um rebuçado, tio.

Ao cabo dum instante, o homem reage:

– Se vieres comigo, levo-te a um lugar onde te dão muito dinheiro.

Estávamos na época do Kapinga, o grande bandido da Zambézia, que batia, roubava e matava ao vivo, fosse quem fosse, diante de quem fosse, sem evidenciar a mínima hesitação. As crianças eram instruídas para não falar nem aceitar nada de desconhecidos, não só porque qualquer desconhecido é sempre um universo de perigos, mas sobretudo porque podia calhar ser o terrível Kapinga, para o qual não havia uma descrição exata, a não ser que tinha olhos flamejantes. As crianças não sabiam o que significava flamejante e, por isso, tinham ainda mais medo.

O homem põe-se a andar e, sem dar por isso, Irene segue-o.

– Você anda sempre assim pela cidade, só com umas calcinhas? – Pergunta o homem com fingida indiferença.

– Nem sempre. Também tenho vestidos – diz Irene espevitada, colocando-se ao lado do homem.

– É por causa do calor que você anda assim?

– Não. Só esqueci pôr o vestido.

O homem esboça um sorriso insidioso:

– Esqueceu pôr o vestido, né?

Não vão muito longe, mas o mundo já é outro.

Entram num prédio negro e sujo. O homem vai à frente, até ao vão da escadaria. Depois, faz um gesto com a mão para que a menina suba primeiro. Ela avança, pensando em rebuçados e bolinhos.

Chegam ao primeiro piso e o corredor está submerso numa luz mortiça que escorre por uma pequena janela com vidros quebrados. O homem bate três vezes numa porta. Um eco sinistro espalha-se pelo corredor. Alguém espreita ao fundo, mas logo se retira. O homem bate mais uma vez, três pancadas secas.

– Mora aqui um senhor que tem muito dinheiro para ti – diz ele. – E também tem refresco e gelados.

Lá dentro, porém, é um reino de silêncio.

– Padre X! – Grita o homem.

E volta a bater e a gritar ainda mais alto:

– Padre X! Padre X!

A agitação quebra o encantamento de Irene e, de repente, o medo agiganta-se dentro de si e ela toma consciência do perigo e sai dali a correr.

Daquela vez, salvou-se.

Tinha seis anos e era uma menina pobre e maltrapilha.

Agora tem 14 anos e é uma rapariga pobre e maltrapilha.

Será possível salvar-se outra vez?

Irene espreita o relógio de parede por cima da cabeça do professor. Lá fora o céu arde. Sombras espalham-se por todo o lado e um derradeiro brilho abate-se sobre as coisas do mundo. Por um segundo, a beleza do lusco-fusco apaga a miséria de sempre dos corpos. É a hora do paraíso na Terra.

O ponteiro dá o salto final e o professor diz aos alunos que podem sair. Irene corre para a porta e vê o rapaz à sua espera no lugar do costume, debaixo da acácia.

– Você me pôs com barriga – diz ela, sem cerimónia.

Subitamente, anoitece e a noite traz o futuro.

O rapaz fugiu. Ela nunca mais o viu, mas a certa altura, dois ou três anos depois, quando o filho já brincava descalço na rua e pedia dinheiro e rebuçados a desconhecidos, soube que tinha morrido, fulminado por um raio durante uma tempestade e, naquele instante, desejou apenas que o raio tivesse sido tão flamejante como os olhos do Kapinga. Nada mais.

Hoje Irene é uma mulher pobre e maltrapilha.

Será que vai salvar-se?

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