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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

3/11/2023 08:00

Ela descende por via paterna duma fiada de três assassinos - bisavô, avô e pai - os três mataram - e por via materna deriva duma fiada de três mulheres intempestivas e orgulhosas - bisavó, avó e mãe - as três fugiram de casa. Pelo contrário, ele provém de raízes sem história para contar, raízes que apodrecem de forma espontânea ao correr dos anos ou que se arrastam despercebidas e sem qualquer glória para os abismos do esquecimento a cada nova geração.

Conheceram-se quando ambos tinham dezanove anos e isso já foi há muitos anos. Ela tinha fugido de casa como a mãe, como a avó, como a bisavó e vagueava à toa num bairro que era o mais degradado e perigoso da cidade e andava ali como se estivesse prestes a enlouquecer ou condenada a enlouquecer ou destinada a enlouquecer.

Foi nesse estado que ele a viu.

Ele estava encostado à porta dum bar a fumar um cigarro de péssima qualidade, muito mau mesmo, e avistou-a do outro lado da rua, que era uma rua estreitíssima, caminhando em passo lento e lunático, com um saco de pano escuro ao ombro e um cansaço oceânico a ondular no interior dos olhos e do corpo e do movimento e, apesar disso, viu também que ela era linda, muito mais linda do que simplesmente linda, ela era eternamente linda e num segundo, um segundo apenas, imaginou a vida inteira ao seu lado e desejou-a sem fim e apaixonou-se sem remédio por ela, como só é possível quando se tem dezanove anos e o amanhã ainda não está condenado a ser um dia perdido do passado.

Ela parou de repente e fixou-o e tudo nele foi ao fundo.

Bastou aquele olhar, o primeiro, e ele ficou a conhecer o fim da história.

Esta mulher nunca será minha, pensou ele e atirou a ponta do cigarro ao chão e a ponta do cigarro desapareceu entre dois paralelepípedos e ficou a fumegar discretamente à espera da hora da extinção e ele, sabendo já o fim da história, hesitou entre entrar no bar e atravessar a rua, que era estreitíssima e requeria apenas três ou quatro passos, instante durante o qual se lembrou do pavor que em criança lhe provocava a ideia de ser atingido por um satélite a cair do espaço a grande velocidade e era um medo absurdo, sem dúvida, mas um medo que o vai perseguir até à morte, ele sabe que sim, é um medo que vai durar para sempre e é um satélite a cair a pique do espaço sobre o vazio da Terra onde ele se encontra vazio como a Terra à espera da morte e foi por isso, por essa lembrança inusitada, que decidiu atravessar a rua e com três ou quatro passos selou o amor da sua vida.

Ela parou de supetão quando o viu e parou de supetão porque pensou que estava a ver o pai e tremeu por isso e disse para dentro este rapaz é igual ao meu pai.

Mas o seu pai era um homem muito mais velho e também era mau e horrível e abusou dela uma vez aos 13 anos e ela passou a viver o terror daquele dia todos os dias e o passado transformou-se em presente contínuo e foi por isso que ela decidiu fugir de casa como a mãe, como a avó, como a bisavó e atafulhou à pressa algumas peças de roupa dentro dum saco de pano escuro e retirou uma pedra da parede do quarto e da cavidade tirou um saquinho contendo o dinheiro que a mãe lhe dera em segredo antes de fugir, porque sabia que aquele dia ia chegar também à vida da filha, e saiu de casa e foi pela vereda sem olhar para trás e a noite ajudou-a a passar despercebida e ela atravessou a ponte de pedra sobre o ribeiro e subiu a encosta indo pelo caminho municipal rente à parede e depois escondeu-se na berma da estrada principal ao pé da paragem e ficou ali à espera do primeiro autocarro e foi então que começou a chorar e sentiu medo e sentiu o estômago e a garganta apertados e sentiu a alma fria e morta e mesmo assim manteve-se firme e disse que jamais voltaria àquele lugar do fundo do inferno onde o pai reinava como o Diabo e agora, de repente, está ali um rapaz igual ao pai e o rapaz vai ter com ela.

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