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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

20/10/2023 08:00

Ainda estou a regar as flores e os canteiros em casa do meu falecido pai, como na última crónica, e os pensamentos que me assaltam chegam e sobram para preencher este espaço até ao final do ano, tanto mais porque eu nunca me debruço sobre os temas da atualidade e, por isso, posso ficar aqui a escrever sobre o que me passa pela cabeça enquanto rego as flores e os canteiros em casa do meu pai até 31 de dezembro de 2023, ou de 2024, ou de 2025, ou até 31 de dezembro de 2667 sem que isso apague ou alerte a rota do amor e do horror à face da Terra, pensei eu enquanto regava as flores e os canteiros em casa do meu falecido pai, dizendo também em voz alta, ou talvez falando com o Tonecas, que todos os títulos até ao fim do ano podiam começar da mesma maneira, sempre assim:

O meu nome é…

O meu nome é Casa do Pai, mas também é Ilha, é Solidão, o meu nome é Fazenda do Avô, é Mar ao Longe, o meu nome é Minha Mãe e Minhas Tias, é Funchal, é Mundo a Perder de Vista, o meu nome é Pat Meu Amor, sim, Pat Meu Amor é o meu nome e para todos os nomes, estes e muitos mais, eu tenho uma história atual e universal, pensei eu enquanto regava as flores e os canteiros em casa do meu pai e, de repente, passa uma camioneta na curva da estrada e eu lembro-me de uma viagem há muitos anos, quando era adolescente, talvez 16 ou 17 anos, e regressava a casa a desoras, não sei porquê, mas o facto é que era tarde e eu estava sozinho no autocarro, talvez fosse a última viagem do 12, Jamboto via hospital, e foi precisamente no hospital que entrou um indivíduo com meia bebedeira, um gajo com mau aspeto e ar bastante agressivo, seco, pele encardida, as veias salientes nas têmporas e nas costas das mãos e nos antebraços, e esse gajo com mau aspeto e ar bastante agressivo, que devia ter o dobro da minha idade, escolheu sentar-se ao meu lado, embora houvesse montes de cadeiras vagas, mas ele fitou-me com os seus olhos violentos, rasos de álcool, e sentou-se ao meu lado e disse com voz arrastada:

- Tudo bem jovem?

Eu abanei a cabeça que sim e disse com voz sumida:

- Tudo bem.

E senti medo, porque o meu nome também é Medo, disse eu ao Tonecas, enquanto regava as flores e os canteiros em casa do meu falecido pai e o Tonecas não ligou nenhuma ao que eu disse, porque andava a farejar tudo e a perseguir as lagartixas e não queria saber do facto de o meu nome também ser Medo e então o gajo no autocarro começou a falar comigo, a dizer onde morava, a dizer que vivia com a mãe e os irmãos, dois ou três, já não me recordo, e a mãe estava doente e ele trabalhava na construção civil mas agora estava desempregado e entre cada coisa que dizia fixava-me com o seu olhar vidrado e belicoso e fazia-me uma pergunta sobre o mesmo assunto:

- Onde moras?

- Com quem moras?

- Onde trabalhas?

E eu estava cheio de medo, porque o meu nome também é Cheio de Medo, mas nunca vacilei e a minha voz foi-se aclarando à medida que falava:

- Moro na Rampa.

- Moro com as minhas tias.

- Eu não trabalho, ando na escola.

E depois o gajo disse que gostava de gatos e tinha um em casa, um gato rajado muito bonito, disse ele, e o gato gostava muito dele e ele gostava muito do gato, mas aqui há dias o irmão mais velho chegou a casa com uma mamada do caraças e o gato estava lá em cima da mesa da cozinha com o rabo estendido e o irmão mais velho pegou num facalhão e cortou o rabo do gato ao meio, zás, disse ele, e o gato fugiu aos berros, a miar desesperado, e ele miou como o gato em voz alta dentro da camioneta:

- MIAU.

E depois o gajo disse que deu uma pancadaria no irmão mais velho, porque aquilo não é coisa que se faça a um gato, coitadinho do bichinho, disse ele, e depois disse que estava quase a chegar a casa e tocou a campainha e antes de o autocarro parar fixou-me outra vez com o seu olhar baço e hostil e disse assim:

- Gostas de gatos?

Eu ia responder, mas ele não me quis ouvir, a verdade é que ele não me quis ouvir, pensava eu enquanto regava as flores e os canteiros em casa do meu falecido pai, ele não me quis ouvir de propósito e levantou-se e antes de sair virou-se para trás e disse em tom altamente ameaçador:

- Acho bem que gostes.

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