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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

13/10/2023 08:00

E, de repente, parece mesmo que foi de repente, morreram todos, ou quase todos, pensava eu enquanto regava as flores e os canteiros em casa do meu falecido pai, morreram todos, ou quase todos, mas não foi de repente, foi ao longo de muitos anos e eu também morri nesse tempo e agora a vida neste lugar é apenas a minha vida e a vida da minha irmã e também há a vida da tia Conceição, velhinha com mais de 90 anos, mas a tia Conceição perdeu o juízo e agora está num lar e não nos reconhece quando a vamos visitar, nem a nós, nem a ninguém, e passa os dias num murmúrio indecifrável, hermético, obscuro, de modo que não se entende nada do que diz a não ser sua morte ámen, é a única coisa que ela diz com clareza, imensa clareza:

Sua morte ámen.

Eu até já escrevi uma crónica sobre isso, porque me impressiona muito ouvi-la dizer aquilo, sua morte ámen, parece o resumo da condição humana, penso eu enquanto rego as flores e os canteiros em casa do meu falecido pai, que foi também a casa da minha falecida mãe e a casa da minha falecida madrasta e depois será a minha casa quando eu já tiver falecido e a casa da minha irmã quando ela já tiver falecido, porque em princípio não tencionamos morar lá, nunca será a nossa casa de vivos, sabe-se lá, mas se calhar a gente ainda vende aquilo e depois a casa será o dinheiro da sua venda e quando o dinheiro acabar, porque o dinheiro acaba sempre, a casa será nada, mesmo que lá permaneça até ao fim dos tempos na curva da Estrada Comandante Camacho de Freitas, a casa será nada, a casa onde eu fui apresentado ao mundo será nada, mas para já é nossa, embora continuemos a nos referir a ela como a casa do pai.

- Quem vai hoje a casa do pai? - Pergunto à minha irmã.

- Hoje vou eu a casa do pai - diz ela.

Não dizemos a casa da mãe, não dizemos a nossa casa, dizemos a casa do pai, talvez porque ele foi o último a morrer, o último de todos os que morreram antes de nós e já morreram quase todos, pensava eu enquanto regava as flores e os canteiros, já morreram mesmo quase todos, morreu a prima Ana, morreu a querida tia Teresa no primeiro dia de primavera do ano 2010, morreu o tio Humberto e a tia Alice e antes tinha morrido a tia Gabriela no Brasil e mais antigamente ainda, quando eu era pequeno, morreu a avó da Rampa e depois morreu o avô Francisco que me ensinou a fazer fisgas e joeiras e carros de arame e tantas outras coisas mágicas que nunca mais esqueci, como apanhar lagartixas e sapos na ribeira, e estes são os mortos do lado do coração, os mortos do amor, os mortos que contam para a vida, pensava eu enquanto regava as flores e os canteiros em casa do meu pai.

São precisas três mangueiras compridas, ligadas em três pontos distintos, para regar as flores e os canteiros, porque aquilo ainda tem uma grande extensão e tem poios e tem paredes e tem escadas e mais escadas e ficou tudo meio baldeado depois da morte do meu pai, com muita erva, muito mato, e a loja das ferramentas perdeu o brilho e parece que nasce entulho e quinquilharia por todos os cantos e recantos, quanto mais se tira mais aparece, e os ratos andam sempre a rondar o galinheiro, comem o milho das galinhas, e eu fiquei estuporado com aquilo, tapei todos os buracos com pedras e arame, espalhei raticida e os ratos devoraram pacotinhos atrás de pacotinhos e a coisa acalmou, mas houve um que morreu no meio da tralha ao pé do galinheiro e começou a cheirar mal, muito mal e não há nada pior do que o cheiro a rato podre, de modo que deitei mãos à obra e removi um monte de coisas durante uma manhã inteira até o encontrar.

- Puta que o pariu.

Foi o que eu disse quando encontrei o rato podre.

Puta que o pariu, disse-o outra vez ao lembrar-me do caso, enquanto regava as flores e os canteiros em casa do meu pai e o Tonecas anda sempre atrás de mim, anda a farejar tudo e a perseguir as lagartixas e ele é um cão muito feliz, penso eu, o Tonecas é um cão muito feliz embora passe grande parte do tempo sozinho, pois tornou-se o cão de um morto a partir do dia 18 de dezembro de 2021, que foi o dia em que o meu pai morreu no Hospital da Cruz de Carvalho, cinco dias depois de ter sido levado numa ambulância da Cruz Vermelha, num domingo à tarde, devido a complicações decorrentes do cancro que estava na fase terrível, irreversível, e ele morreu no Hospital da Cruz de Carvalho num quarto virado para as zona altas, onde fica a casa, a casa do pai.

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