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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

17/11/2023 08:00

E vós perguntais:

- Que raio de conversa vem a ser esta?

E vós dizeis:

- Isto não interessa a ninguém.

E vós exclamais:

- Conversa da treta!

Eu, porém, estou aqui num quarto de hotel em Lisboa a narrar o estado em que me encontro e estou absolutamente convencido de que isto é tão importante quanto o relato diário do horror e da desordem e da desesperança que abala e embala a nossa espécie, mais não seja porque eu sou um pedaço dela e os sinos também dobram por mim, tal como dobram por ti e por ele e todos os que não têm história. Os sinos dobram sempre por nós - os mortos do futuro.

De modo que estou em Lisboa e estou sozinho e quando eu estou sozinho em Lisboa sinto-me como se estivesse no princípio do fim do mundo e é por isto que eu adoro a capital. Já dei uma volta completa ao planeta, mas só em Lisboa me sinto perdido. Para mim, Lisboa é sempre a primeira vez e esta sensação nunca me abandona e é uma sensação mágica, embora eu já conheça quase todos os caminhos de cor.

Fui então dar a volta do costume, partindo do hotel a pé, seja lá em que rua for, até ao Cais das Colunas, regressando depois por outro caminho, e desta vez andei sem parar mais de duas horas e meia e fiquei com uma dor do caraças na zona lombar e essa dor quase não me deixou dormir nessa noite e ainda persiste, embora a culpa não tenha sido da distância percorrida, mas das botas que calçava, pois eram demasiado pesadas para tão longa caminhada, durante a qual o resto de mim e o resto do mundo se apresentaram, dizendo um para o outro:

- Muito prazer em conhecê-lo.

Como sempre, no decurso da apresentação eu evitei olhar para o meu reflexo nas montras para não me chatear com o volume da barriga que teima em crescer à medida que envelheço e como sempre o resto do mundo não reparou na minha insegurança nem na minha vaidade e como sempre os traficantes da baixa vieram sussurrar-me ao ouvido:

- Haxixe.

E também:

- Cocaína.

Pois é certo que uma boa parte do resto do mundo olha para mim como consumidor de drogas, nunca percebi bem porquê, mas deve ser pela aparência, e como sempre fiquei fascinado com o rasto dos aviões no céu de Lisboa e também com as gaivotas poisadas no alto dos postes de iluminação pública e como sempre toda a gente na rua me pareceu bonita, misteriosa, exótica e como sempre no olhar de toda a gente eu encontrei vestígios da minha beleza, do meu mistério, do meu exotismo e também como sempre vi algo que nunca antes tinha visto na cidade e desta vez foram os periquitos-de-colar em voo livre entre as árvores na Avenida Duque de Ávila e depois passei a vê-los todos os dias por todo o lado, porque, de facto, eles já cá estão há imenso tempo e eu não sabia disso e depois, como sempre, fui dar mais uma volta e perdi-me completamente, porque, bem vistas as coisas, eu não conheço quase nenhum caminho de cor em Lisboa.

E então, como sempre, a solidão começou a fazer uma sumida em mim e a certa altura eu pensei que ia levitar ou que me ia dar um AVC ou um ataque de coração, que são ocorrências cada vez mais frequentes em pessoas com a minha idade (incluindo a levitação), e senti mesmo que ia passar para outra dimensão do ser e do tempo e do espaço e isto é uma coisa extraordinária que só me ocorre quando estou sozinho em Lisboa - o lugar onde começa o fim do mundo.

De repente, o telefone tocou e eu fui salvo pelo amor.

- Pat!

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