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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

21/07/2023 08:00

Ainda agora estava aqui, a conversar, a tomar um copo, mas já não me vejo em lado nenhum. Parece que me esqueci num canto qualquer, como um guarda-chuva depois da chuva, ou que me perdi como uma criança numa rua movimentada por causa da loja de brinquedos - aquele carrinho, sim, aquele carrinho -, ou como um miúdo que corre para o chafariz onde vai morrer afogado - dez centímetros de água, sim, apenas dez centímetros de água.

Onde estou?

Pergunto às pessoas se me viram lá atrás, no caminho que fizeram até aqui, pergunto-lhes se por acaso viram um gajo como eu, um gajo caído no chão, tipo carteira de bolso, ou chaveiro, ou cão muito amado que fugiu de casa, tipo isso, e as pessoas ficam espantadas, perplexas, atordoadas, e dizem-me assim:

- Tu estás aqui.

Eu reajo com agressividade, como um louco:

- O avião vai levantar e eu não posso ir sem mim.

Raio de sonho!

Acordei sobressaltado. Era madrugada. É sempre madrugada quando os sonhos me despertam e fazem sonhar. Sentei-me na beira da cama e pensei nas minhas grandes viagens, há tanto tempo! Também pensei noutras madrugadas e noutros sonhos e noutros despertares, pensei na beira de outras camas, tão longe de casa, onde fiquei igualmente a sonhar, há tanto tempo, meu Deus, há tanto tempo…

Primeiro, quando eu era rapaz, desejava ardentemente partir à descoberta do mundo, mas como tinha medo e não tinha dinheiro não me mexia. Para dizer a verdade, nem sequer tinha dado ainda uma volta completa à ilha e muito menos tinha ido ao Porto Santo.

Depois, quando comecei a trabalhar, meti na cabeça que haveria de guardar tudo para investir numa viagem de longo curso, mas desterrei tostão por tostão em bebedeiras e inutilidades. Ganhei amigos, amores, esplendores. A seguir perdi-os. Ganhei outros. E o mundo era uma coisa assim de ver na televisão ou de ouvir falar dele.

Às vezes, eu ficava a matutar na grande viagem, durante a qual estaria disponível para ultrapassar qualquer dilema, pronto para sofrer com a desgraça humana, apto para enfrentar e ultrapassar todas as barreiras, livre para amar e padecer injustiças, forte para suportar doenças e trabalhos penosos e depois continuar, ir atrás do sol.

Eu dizia assim:

- Tens de fazer esta viagem, Duarte. Tens de regressar com o cabelo comprido e a pele queimada e a voz limpa como o silêncio e o gesto sereno como o voo do milhafre e os olhos húmidos como o orvalho da manhã. De caminho, terás aprendido imenso e sofrido muito, de modo que poderás então estar com os outros sem ocupar o seu espaço e, sobretudo, terás adquirido uma capacidade infinita para escrever. Além disso, terás finalmente uma história para contar.

Eu dizia assim:

- Vai, Duarte, vai. Anda. Desaparece. Parte sozinho e não olhes para trás. O desafio é ser verdadeiro e isso só faz sentido se caminhares sozinho.

No entanto, os anos rolavam e a viagem não acontecia. Eu continuava a gastar o dinheiro em futilidades. Pecunia parva et vanitas imensa. Está claro que andei à roda do mundo, ora a expensas próprias, ora à conta da entidade patronal, e conheci lugares encantadores - Terra do Fogo, Tibete, Cabo Verde, Austrália, Bora Bora, todo o meu querido país e tantos outros -, mas a viagem com a qual eu sonhava, a viagem grande, essa só aconteceu depois dos 40, quando embarquei para Moçambique, onde vivi durante cinco anos, às vezes quase como um vagabundo.

Dali, sim, regressei com o cabelo comprido e a pele queimada e o silêncio puro na voz e o espírito cheio de esplendor e miséria - a regra geral da humanidade. Só me falta o engenho para escrever a história…

E cá me deixei ficar outra vez parado, a ver o mundo na televisão e a ouvir falar dele. Contudo, o desejo de partir arde, arde sem parar, arde sempre, e eu sei que a memória daquela viagem jamais o deixará morrer, mesmo que cada nova partida seja apenas em turismo…

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