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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

22/09/2023 08:00

- Eu estava de férias - respondeu o marido. - Nunca me quis intrometer.

Mas ele sabia que a resposta não prestava, era falsa.

- Férias?! - Disse ela. - Como podes dizer que estavas de férias? Que merda de desculpa é essa? Tu vivias lá, trabalhavas para eles. Aquilo não era um resort na praia, era uma missão em África, pelo amor de Deus!

- Tu não compreendes...

- Devias ter reunido provas. Devias ter denunciado. Mesmo sem provas, devias ter feito alguma coisa, devias ter escrito pelo menos uma carta aos superiores em Roma. Tinhas essa obrigação moral, raios te partam! Afinal, que tipo de homem és? Com quem estou casada?

A mulher explodia.

- Tu não sabes o que é viver em África! - Disse o marido, subindo um pouco o tom de voz.

(Agora, vou repetir o alerta que fiz na crónica número 109, de 28 de setembro de 2017, quando iniciei esta narrativa. Prestem atenção: o marido, neste caso, pode muito bem ser eu, porque esta história é um exercício de ficção sobre a minha vida real. Trata-se de uma forma engenhosa de dizer a verdade sem recorrer à mentira ou à revelação de segredos, atitude muito comum nas pessoas que procuram encarar as coisas tal como elas são. Não vos parece?)

E, então, se eu tivesse sido prudente na gestão do meu dinheiro, não estaria agora nesta semi-penúria, pedindo que me paguem a refeição do espírito em troca de histórias passadas em África, que podem até ser mentira. De resto - já o disse e insisto -, à primeira vista, tudo o que acontece em África parece mentira. É preciso ver para crer.

Bem, a verdade é que não me sobra um tostão, mas, por outro lado, posso afirmar que os anos que lá passei foram dos melhores da minha vida - belos e ao mesmo tempo estranhos, de certa forma aterradores. Sim, aterradores também!

Aqueles anos combinaram uma série de fatores que me levaram do deslumbramento ao horror, o que - posso afiançar - é muito comum ocorrer com as pessoas que caem em África de paraquedas e movidas por outra razão qualquer que não tenha a ver com dinheiro, ganância ou sexo fácil e abundante. Quando uma pessoa vai para África pensando noutra coisa, seja lá o que for, que não meta dinheiro, ganância e sexo, é arrebatada pelo deslumbramento e pelo horror. Depois, com o passar do tempo, o deslumbramento e o horror fundem-se num único e misterioso sentimento, como um feitiço que nos amarra à terra. E nunca mais queremos saber de outra coisa a não ser de África. Até mesmo quando uma pessoa vai de férias nota isso, embora de forma leve e indefinida, como uma indisposição trazida por um sonho estrambólico, uma coisa que depois desaparece.

Deslumbramento e horror. Nem mais.

A vida é assim, não me farto de repetir.

Para lá beleza, para cá tristeza. Ou vice-versa.

Talvez o texto agora vos pareça desconjuntado, as coisas não encaixam umas nas outras, como se eu estivesse perdido, ou alterado, ou bêbado na hora da escrita, mas o meu propósito é precisamente esse - dizer-vos que a maneira como o passado se ajeita no presente fá-lo sempre parecer uma peça inapropriada ou fora de lugar, embora todos saibamos que o puzzle da alma fica incompleto na sua ausência - um buraco vazio no lugar do coração. Ou seja, na compostura do ser e na definição da sua integridade, tudo conta, tudo, incluindo o que já foi esquecido, de verdade ou a fingir, e agora nada vale.

De modo que, naquela manhã, ela foi ver a caixa do correio, coisa que nunca fazia, pois era uma tarefa do marido. No entanto, impelida por um desejo insondável, desceu ao rés-do-chão antes do pequeno-almoço e encontrou um envelope de papel pardo limpo, sem qualquer inscrição. O primeiro pensamento foi deitá-lo fora, porque era uma carta anónima, mas a curiosidade assaltou-a. O envelope continha algo volumoso, com aparência de ser um livro ou qualquer coisa do género…

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