Da última vez que fomos visitar a tia Conceição no lar, eu e a minha irmã encontrámo-la muito bem-disposta, sempre a falar coisas lá do fundo da sua demência, murmúrios, sussurros, coisas que não se entende. No entanto, a certa altura disse-nos com uma nitidez perturbante:
– Há dias em que as coisas, às vezes, são claras. Depois, há outros dias em que as coisas...
Ficámos na expectativa, a ver o que sairia dali, mas não saiu nada. Voltaram as falas sem sentido, as palavras à toa, as murmurações, os rumorejos e ela pôs-se a esfregar as mãos, as suas mãos tão velhas, sempre a esfregar as mãos uma na outra. É um hábito obsessivo que agora tem e foi-lhas esfregando, esfregando, esfregando, até que, de repente, uniu o indicador e o polegar da mão direita como se estivesse a segurar alguma coisa, uma coisa ínfima, mas não havia lá nada, e disse:
– Onde ponho isto?
Eu disse:
– Dê-me lá isso.
Peguei delicadamente naquele nada, muito delicadamente, também entre o indicador e o polegar, e atirei-o fora.
Ela riu-se e disse:
– Só tu para me fazer rir.
Na verdade, não era assim que eu pretendia iniciar esta crónica. O que eu queria mesmo dizer é que, a meu ver, é natural que a História da Humanidade se repita na medida em que a natureza humana não muda. No fundo, isto foi tudo o que aprendi até agora, no meu percurso de 57 anos à face da Terra, ou, pelo menos, acho que esta ideia sintetiza tudo o que aprendi desde que tomei consciência de mim, do tempo e do espaço da minha vida e a minha vida – devo dizer – é o único lugar onde cabe tudo o que existe no Universo, tal como a tua vida, caro leitor, é também esse lugar, bem como a vida de toda a gente.
Nós, os vivos, somos o reservatório da totalidade do Universo, tal como os que vieram antes de nós – todos os mortos – o foram. Sendo assim, o que fazemos é tão-só repetir os atos, os pensamentos e as omissões dos milhões e milhões e milhões que nos precederam, isto para já não falar das palavras e dos sonhos. É tudo igual, descontando a ciência e a tecnologia, porque essas, já se sabe, são cada vez mais evoluídas no esclarecimento do nosso nada. E o resto é esquecimento...
Já agora, a quem pensa ser diferente, ímpar, posso apenas garantir que há de cair no mesmo abismo em que todos os mortos caíram e de onde nunca nenhum regressou, embora valha sempre a pena fazer o possível e o impossível para que a nossa vida seja de facto distinta, indivisível, pelo menos no campo imaterial, talvez o único que não se consegue medir.
Quero ainda dizer que escrevi parte desta crónica na minha casa nas zonas altas, enquanto o Tonecas lutava no quintal contra um castor de veludo que lhe ofereci. Custou-me 10 euros e ao cabo de três dias ainda se apresentava em estado razoável, ao contrário dos bonecos que o antecederam, que duraram apenas algumas horas. Este parece ser de boa qualidade, ou seja, é resistente aos dentes, à fúria e ao entusiasmo do Tonecas, mas eu sei que falta pouco para se tornar num mero trapo estendido no terreiro, como os outros, apesar de valer 10 euros.
Posso também dizer que outra parte desta crónica foi escrita num bar cheio de gente, no centro da cidade, enquanto esperava pela Pat e ela nunca mais chegava e eu bebia cerveja e escrevia e o bar tem uma parede coberta por um mapa-múndi e o mapa-múndi fez-me pensar em todas as viagens da minha vida à espera da Pat e eu bebia cerveja e escrevia a crónica num caderninho de capa preta e ao escrever lembrava-me da tia Conceição, ela a caminhar entre nós, a minha irmã e eu, cada vez mais velhinha, cada vez mais trôpega porque passa muito tempo sentada e custa-lhe andar, vai muito devagarinho, agarra-nos com força para não cair e coloca um pé à frente do outro, cuidadosamente, um pé à frente do outro, como uma modelo a desfilar em câmara lenta, linda, linda como qualquer alma enquanto percorre o mundo...