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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

14/06/2024 08:00

Às vezes, eu fecho os olhos e sou outra vez um índio na fazenda do meu avô e a luz do mundo recua ao tempo da fundação da minha vida e todas as coisas tornam a ser primitivas e iniciais como eram antes dos acontecimentos que me trouxeram até aqui e eu sempre gostei mais de ser índio do que cowboy, embora me fascinassem sobremaneira a pistola no coldre à cintura e a estrela de xerife ao peito, porque ser índio implicava um contacto mais profundo, intenso e selvagem com a terra e os outros.

Era preciso fazer arcos e flechas, lanças e machados de pedra lascada, era preciso cortar a roupa às tiras e procurar penas vistosas no galinheiro para pôr na cabeça, era preciso pintar riscos coloridos na cara e montar tendas com varas e sacos de cimento vazios, era preciso fazer fogueiras e comunicar com sinais de fumo e também era preciso armar guerras e foi por isso que eu fiz o crisma com um olho negro, já que fui atingido por uma lança de canavieira dois dias antes da cerimónia, em cheio no olho direito. A minha sorte foi que a lança era leve e não tinha a ponta afiada, caso contrário teria ficado gravemente ferido.

Às vezes, eu fecho os olhos e estou outra vez diante do meu primeiro grande amor no começo da adolescência, quando ainda brincava aos índios e cowboys na fazenda do meu avô, e ali está aquela menina de cara redonda e faces sempre rosadas a sorrir para mim e ela fazia parte do grupo de campismo e o nosso amor nasceu na serra, cresceu na serra, morreu na serra e eu nunca mais a vi, nem agora a reconheço.

Trocámos muitas cartas e bilhetinhos cheios de palpitação e ansiedade, mas nunca demos um beijo que fosse, tal era a timidez e o medo. A nossa paixão durou uns dois anos, mas a verdade é que mal nos tocámos. Tivemos várias oportunidades para o fazer, mas nunca o fizemos. Os ares da montanha deixavam-me num estado de excitação demente e penso que ela também sentia o mesmo. As tendas, as fogueiras, as noites frias, os passeios nas veredas e nas levadas, tudo nos inflamava, mas nunca aconteceu nada, nem sequer um beijo, um simples e inocente beijo. Não aconteceu nada a não ser no olhar e no coração.

Às vezes, eu fecho os olhos e penso que a vida continua a ser um acampamento de índios na fazenda do meu avô – uma tribo em harmonia com a natureza, mas sempre na iminência de uma guerra, uma morte, uma tragédia na ponta da lança de canavieira – e o amor, por outro lado, parece-me sempre o primeiro do começo da adolescência, enorme e avassalador e depois subitamente inócuo, para nunca mais se ver, nem sequer reconhecer, apesar de tudo o que fica, de tudo o que pesa, de tudo o que magoa, de tudo o que enriquece e liberta.

E então assalta-me a ideia de que, de facto, eu nasci para ser um índio na beira da tristeza e amar mulheres sempre distantes e fugidias, urdidas em bruma e obscuridade, na sombra de castelos e jardins encantados, mulheres que caminham determinadas e altivas para os abismos da vida, mas também mulheres profundamente marcadas pela elegância, a verdadeira elegância, a que é inteligência e sabedoria, peso certo, medida certa, discrição e bom gosto, a elegância que enobrece e deslumbra, a elegância que é pura sofisticação, pura simplicidade.

Às vezes, eu fecho os olhos e oiço vozes a dizer que, afinal, escolhi o caminho do índio triste e do amor para sempre no Hospital dos Marmeleiros, em 11 de novembro de 1967, no exato momento em que me tiraram do ventre da minha mãe e me puseram no mundo e dizem também que devo essa escolha à incompreensível e misteriosa flutuação das energias universais que colocou no meu percurso todas as pessoas que conheci até hoje, todas sem exceção, a começar por ti, sim, tu aí que agora me lês – a minha forma de ser também começa em ti.

Às vezes, eu fecho os olhos e...

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