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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

26/07/2024 08:00

Há muito tempo, quando eu andava na casa dos vinte anos e já sabia que a minha namorada da altura me ia trair e abandonar, pois os sinais eram mais do que evidentes, embora eu os negasse, coitado de mim, fazendo da negação uma espécie de salvação – estão a ver o estilo? –, nessa época já tão distante, dizia eu, apaixonei-me por uma tipa com quem me cruzava na cidade volta e meia.

Era um amor platónico.

Sem querer, fui descobrindo coisas a seu respeito. Soube que era espanhola e sempre que passava por ela tremia todo por dentro e ficava ainda mais apaixonado e para mim ela era a espanhola mais bonita do mundo, ou pelo menos a espanhola mais bonita que estava na Madeira e ela vestia umas roupas assim alternativas, meio hippie, meio tribais, saias compridas, bonés coloridos, sandálias com tiras a subir pelas pernas e era relativamente baixa e tinha a pela escura e os olhos rasgados como se fosse asiática, mas não era asiática – era espanhola, a espanhola mais bonita do universo, pelo menos do universo onde eu vivia e eu vivia a escrever, cadernos e mais cadernos, escrevia sem parar nem cuidar da palavra e quando a escrita em mim se torna imparável e descuidada é um prazer inigualável e que se lixem os erros.

Escrever tira-me as mágoas e traz-me explosões de alegria, mas, de repente, uma dor aguda atravessa-me o peito do lado esquerdo. É sempre assim. Que merda vem a ser isto?! Será que não tenho direito à felicidade de escrever sem parar? Será que não tenho direito a inventar um mundo e a governá-lo da maneira que quiser? Será que esta dor veio apenas para me impedir de ser Deus dentro de mim e de criar homens iguais aos homens do mundo real, iguais aos homens que Deus criou? Será que a minha gente não pode ser como todas as pessoas que me rodeiam? Homens bons, maus, bêbados, provocadores, assassinos profissionais, outros passionais, outros irracionais, homens perfeitos, homens doentes, homens loucos, ambiciosos, mafiosos, ricos, pobres, miseráveis, homens como eu? Será?

Seja como for, eu sentia uma paixão avassaladora pela espanhola e a essa paixão crescia e intensificava-se à medida que a rotura com a minha namorada se tornava mais iminente – aquilo estava mesmo por semanas, era inevitável – e, no entanto, eu nunca tinha falado com a espanhola, nunca. Cruzávamos o olhar constantemente, quase todos os dias. Às vezes, simulávamos sorrisos, mas nunca sorríamos de facto. E, contudo, eu sabia o seu nome e a sua nacionalidade, sabia que era professora numa escola particular e falava fluentemente inglês, português e latim, vejam só, além de castelhano e galego.

Como é que eu sabia tudo isto? Pois, porque um dia fui ter com um colega de trabalho a um bar e ele estava lá a falar com ela, já a despedir-se, e eu fiquei a tremer de alto a baixo ao ver aqueles olhos rasgados tão perto dos meus e o cheiro da sua pele fez-me estremecer e vacilar, não o cheiro do perfume, mas o cheiro do seu corpo, o cheiro dela, e ela foi-se embora no justo momento em que eu cheguei.

– É a minha professora de inglês – disse-me o colega.

Depois contou-me tudo o que sabia a seu respeito e eu quase morri de amor ali mesmo e, naquele instante, assaltou-me a certeza absoluta de que ela também estava apaixonada por mim. Vejam só como são as certezas no tempo da imortalidade!

Dois ou três dias depois, eu estava numa esplanada a ler um jornal e num virar de página levantei os olhos e vi-a diante de mim, a perscrutar o recinto à procura de lugar para se sentar. Eu sorri à toa para o vazio, pensando que sorria para ela. Queria tanto que ela me visse a sorrir, mas passou por mim sem dar troco e foi sentar-se lá atrás, ao fundo, e eu voltei-me à procura do seu olhar, mas havia um pilar entre nós e eu só conseguia ver uma réstia do seu vestido preto e a pala do boné vermelho.

Estive mais ou menos uma hora a tentar ganhar coragem para me levantar e ir falar com ela. Desta não passa, pensei. E procurava um pretexto qualquer, fosse lá o que fosse, talvez umas aulas de inglês, como o meu colega, ou de latim, para ser mais exótico e profundo, mas quando me levantei e contornei a coluna ela já não estava lá e eu nunca mais a vi, nunca mais...

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