Este ano celebram-se os 50 anos da Revolução de Abril de 1974. Não tenho memória da Revolução e muito menos do que era viver antes de termos liberdade. Mas tenho memória da alegria do meu pai, do entusiasmo que sentia pelo ato democrático de votar, da alegria daquelas primeiras campanhas eleitorais. Dos carros que passavam na estrada junto à nossa casa e lançavam papéis coloridos, que eu e os meus irmãos colecionávamos.
Tenho memória do respeito que o meu pai tinha por alguns políticos e por algumas das ideologias de uma democracia a dar os primeiros passos.
De alguns desses políticos, o meu pai dizia: “é um senhor”. Mal sabia o meu pai que a política havia de dar lugar, muitos anos depois, a um terreno fértil em suspeições, povoado por partidos saudosos de outros tempos, com discursos que segregam, com medidas que ofendem quem lutou e fez a Democracia, povoada por homens pequenos por dentro.
50 anos depois, a Democracia arrisca-se a estar refém desses homens pequenos, alimentados por uma geração que não valoriza a liberdade. Uma geração sem memória, que embarca facilmente, e sem questionar, num discurso simplista, vazio, ao nível do que se produz nas redes sociais e que é vendido como verdade suprema e única.
Tenho ouvido, nos últimos dias, relatos na primeira pessoa de jovens e menos jovens que não foram votar durante anos, mas que agora foram porque alguém diz as verdades e faz as denúncias. E não importa se essas supostas verdades e se essas denúncias carecem de fundamento, não importa se essas verdades carecem de moral e de ética, não importa se essas verdades vêm embrulhadas num discurso infame contra o que julgávamos ser inabalável 50 anos depois de abril.
Infelizmente, a cultura da rede social está a alastrar. O discurso primário, simplista, mentiroso, o triunfo da ignorância e da mediocridade saltam por cima da racionalidade, da inteligência, do mérito, da verdade, da decência, da moral e da ética.
É triste que tenhamos feito um caminho de cinco décadas para chegar aqui.
É triste que ninguém explique, principalmente aos mais jovens, o que era não ter liberdade, o que era um país onde as mulheres não tinham direitos, um país onde livros e músicas eram proibidos, um país onde havia uma polícia política que impunha silêncio, que castrava o livre pensamento, que perseguiu músicos, escritores e políticos apenas por pensarem diferente.
E, nesse país, o meu pai que gostava tanto da liberdade e da democracia quando elas nasceram, não teve direito a uma infância. Fez-se homem aos 14 anos, foi trabalhar para sustentar a casa, e, ainda assim, nem por um minuto deixou de sonhar com uma vida melhor, com uma liberdade que chegou anos mais tarde quando ele já não era filho, mas pai.
E o meu pai, que aos 14 anos já não era criança garantiu, nessa liberdade, que nós teríamos a infância que ele não teve. Aproveitou a escola para todos que a liberdade e a democracia trouxeram, para nos levar à escola pela mão e depois nos entregar a liberdade da escolha por esse caminho.
O meu pai gostava de ouvir, no velho gira-discos, que já não era privilégio dos ricos, as músicas que cantavam a liberdade. E seguia, com um entusiasmo sempre novo, os debates na televisão democrática.
Pelo meu pai e por muitos que como ele que souberam honrar a liberdade e transmitir os seus valores e a memória de um tempo sem liberdade, vou festejar estes 50 anos com alegria e lutar contra a mediocridade que se agiganta, mas que nunca vencerá a poesia de sermos filhos da liberdade.