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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

16/08/2024 07:40

Nasci triste. De natureza triste, quero dizer. Ou seja, a minha tristeza não decorre da má sorte nem da repetição crónica de azares na vida, graças a Deus, como acontece para aí com dois terços da Humanidade, ou talvez mais, que vivem esmagados pela miséria, a fome, a guerra, a peste, a loucura, a morte todos os dias. Todos os dias, vejam bem! Não. Nada disso. Eu não faço parte dos milhões e milhões de desafortunados de quem se ouve falar todos os dias em todos os meios de comunicação, primeiro com grande preocupação, sempre com grande preocupação, e depois para sempre em rodapé – aqueles milhões cujo sofrimento tanto me impressiona e logo me remete para a indiferença, aqueles milhões de desgraçados que volta e meia vêm lá do fundo da sua penúria povoar os meus sonhos e me sussurram ao ouvido:

– Mesmo sem nada, és um privilegiado.

Ou então:

– Não tens ouro, mas brilhas como uma pepita.

Ou ainda:

– Deus carrega o Diabo que vive em ti.

Sou triste, mas não é por infortúnio. Sou triste por natureza. Até agora, nunca me faltou nada. Nem saúde, nem amor, nem dinheiro. Ao contrário da saúde e do amor, cuja importância e grandeza se afere pela quantidade – quanto mais, melhor –, o dinheiro vale tanto como a cabeça de quem o gere, de modo que pouco pode ser muito e muito pode ser nada.

De certa forma, o dinheiro é como o sexo – ocorre quase na totalidade dentro da imaginação de cada um e antes do ato. Depois, vai-se a ver e é um instante... Ahhhhhh.... Tal como o dinheiro – tanta angústia, tanto desejo, tanta inveja e vai-se a ver meia dúzia de patacas chegam. O resto é luxo, vaidade, desperdício, exibicionismo, chatices e, sobretudo, tempo que passa.

O que vale é o amor, meus amigos.

O que vale é a vida, a parte de dentro da vida.

Já dei uma boa volta ao mundo com a minha tristeza às costas, na giba da alma, e, embora esteja parado há muito tempo no mesmo lugar, aqui na ilha, tenciono continuar a viagem um dia mais tarde – quem sabe amanhã, ou se calhar hoje, ou talvez ontem, sim, talvez ontem, pois o espírito parte sempre muito antes da partida, do mesmo jeito que chega sempre depois da chegada –, nem que seja para fazer a volta ao contrário e colocar a alma nas costas da tristeza.

É isto. Sou triste por natureza, a natureza que herdei do mestre Gabriel e da senhora Celina, meu querido pai, minha querida mãe, já falecidos, ele pedreiro – vida dura toda a vida –, ela dona de casa e bordadeira – a vida inteira cheia de canseiras –, ambos das zonas altas de Santo António. Eu sou a sua natureza e natureza que eles herdaram dos seus, a natureza que atravessou oceanos de tempo e sangue e veio até mim, a natureza que me fez e agora me desfaz em onda nesta página de jornal, aqui no momento em que me lês.

Eu sou este homem. Sou triste, mas a minha tristeza não decorre da má sorte. É a minha natureza. Como disse, até agora nunca me faltou nada, nem saúde, nem amor, nem dinheiro, apesar de ter sofrido muito por tudo isso, com males de vários tipos, manias, pseudo-traumas, reações vagais, ataques de pânico, doenças imaginárias de A a Z e também bebedeiras de caixão à cova, longas travessias no deserto, algumas quedas na estrada de Damasco e outros tormentos que tais, alguns fatais, como a morte da minha mãe, a morte da minha tia Teresa, a morte da minha prima Ana, a morte do meu pai, a morte de... a morte de... a morte de...

Cada crónica que escrevo é um retrato da minha natureza, às vezes morta, às vezes viva, cada crónica é também um ato de confissão, mesmo quando escrevo ficção, e, contudo, no fim de cada uma oiço apenas o eco do vazio, sim, o eco do vazio, como se uma parte da verdade tivesse ficado por dizer, talvez a parte mais pura da verdade...

E agora, meus amigos, considerando que estou de férias na praia e a noite está agradável, vou de calções e manga cava à vila – ou melhor, à vilha – tomar um uísquezinho e vou mesmo sozinho, se for caso disso! É que, natureza à parte, eu sempre acreditei na magia da vida e gosto de celebrá-la!

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