Conta-se que o bisavô do lado materno era um indivíduo baixo e magro, de aparência frágil, mas duro como aço ou qualquer outra coisa assim muito dura, um indivíduo a quem toda a gente tirava o chapéu por medo e consideração. Temiam e respeitavam a sua verticalidade. Era um gajo lixado, por assim dizer. Amava a terra, a água e tudo o que nascia da terra. Todos os dias percorria as propriedades, cerca de quatro hectares (o que por aqui é muito), e nessas andanças assemelhava-se mais a um vulgar trabalhador do que ao patrão. No verão, puxava os galhos das figueiras com o bico da foice e comia os figos maduros, mesmo quando na ponta se agitavam uma ou duas lagartinhas. Depois, piscava o olho e dizia:
– Figos bons!
Nos sábados à noite, convidava os amigos para beber vinho na adega e contava-lhes histórias como se abrisse sulcos na terra e depois os amigos iam embora com o espírito remexido, exauridos.
O velho tinha três filhos, três rapazes. Um deles, o primogénito, tinha a mania de fugir de casa para ir ver os barcos na baía e no calhau, coisa que ele não tolerava.
– Quem tem terra não precisa de mar – dizia o velho.
E batia-lhe com o cinto de couro.
Isso, porém, teve um efeito contrário e incentivou-o a fugir de vez. Embarcou clandestino num navio, ainda antes de completar 18 anos, e desapareceu no mundo. Nunca mais ninguém soube dele.
Os outros filhos mantiveram-se sempre ao seu lado e no fim dividiram a herança sem brigas. Um deles vendeu depois a sua parte e emigrou para o Brasil. Nunca mais voltou à terra natal, mas todos os anos pelo Natal enviava um postal ao irmão. Dizia que estava tudo bem, mandava saudades e desejava felicidades ao irmão e à sua família. O irmão respondia-lhe no mesmo tom por altura da Páscoa.
O velho viveu até aos cem anos e, a partir de certa altura, estava convencido de que já não haveria de morrer. Era uma convicção lúcida, sem sombra de loucura, uma certeza absoluta. Meu Deus, quanto sofrimento se evita com uma consciência destas! De facto, estar vivo é o único sinal de perfeição que há em nós, simplesmente porque a vida nos permite sempre uma possibilidade de salvação. Todo o resto decorre da imperfeição da espera pela morte.
Já o outro, o bisavô do lado paterno, morreu bem mais novo, antes de chegar aos 80, mas talvez tenha vivido com mais intensidade.
Era alto e forte e conta-se que tinha uma tatuagem no braço esquerdo, uma sereia azul. O gajo fugiu da tropa. Faltava um dia para embarcar rumo às trincheiras em França e ele desertou e andou desaparecido não se sabe por onde até 1920. Diz-se que durante esse tempo foi ladrão e assassinou uma pessoa. Depois, entregou-se às autoridades e esteve preso até 1921. Não por causa dos roubos ou do alegado homicídio, mas por ter desertado do exército. Saiu da cadeia magro, mas pujante, e trazia uma sereia azul tatuada no braço esquerdo, o que naquele tempo era raro e extravagante.
A tatuagem preenchia quase toda a superfície de pele entre o ombro e o cotovelo e era motivo de grande admiração, mormente nas tascas, quando ele a exibia. O cabelo infinito ao vento, o olhar penetrante, o rabo de peixe enorme, o mar revolto ao redor e sobretudo a inesperada delicadeza do ponteado azul deixavam qualquer um de boca aberta.
Nos doze anos seguintes produziu dez filhos. Conta-se que trabalhou numa fábrica de conservas, onde a certa altura se desentendeu com o gerente. Foi despedido e obrigaram-no a devolver a farda. No entanto, como a empresa tinha fornecido apenas o tecido, o gajo decidiu ficar com as linhas que cosiam os diversos componentes, bem como com os botões da camisa, do casaco e das calças, porque tinham sido adquiridos por si, pelo que entregou apenas o pano – farda desfeita.
Anos mais tarde, aplicou o mesmo método quando não lhe pagaram o trabalho de construção de uma pequena casa de dois quartos: desmontou-a telha por telha, pedra por pedra, trave por trave e deixou tudo amontoado num canto.
Viveu sempre na miséria e na miséria morreu.