O marido foi para a guerra, morreu na guerra. Ela ficou sozinha com o filho pequeno e chorou, chorou e o tempo passou na ilha, no mundo, na vida. Era bela e pobre, forçada a trabalhar na fazenda e a cuidar de animais para sobreviver, sustentar o filho. O galinheiro e o chiqueiro ficavam logo atrás da casa – meia dúzia de galinhas, um porco. O poio e o palheiro, herdados do marido, ficavam no Cabeço de Dentro, longe de casa. Era pouca terra, mas fértil. Ela ia lá todos os dias. Cavava, semeava, mondava, regava, colhia. Abria também a porta do palheiro e tirava a vaca para fora e deixava-a andar por ali, porque tinha pena de ver o bicho preso no escuro, sem espaço para se mexer.
O seu vizinho António, que era casado com uma mulher mais velha, começou a andar atrás dela assim que chegou a notícia da morte do marido. Perseguia-a, vigiava-a, tentava-a e ela recusava, repelia, resistia e dos vinte anos passou para os trinta e ele sempre a dar em cima. Agora, já não escondia a sua obsessão, era mesmo do conhecimento de todos e a sua mulher definhava em ódio e ciúmes da outra – Maria, a mais bonita que Deus pôs no mundo.
Durante anos, o marido visitou-a em sonhos e isso sossegava-a, mas depois deixou de vir e tudo nela começou a ceder, até que consentiu a primeira vez com o vizinho e a seguir consentiu mais seis vezes, se calhar 66 vezes, ou talvez 666 vezes e, de repente, veio um dia em que ela tossiu, tossiu, tossiu com uma violência de paralisar quem estava por perto e depois veio outro dia e ela vomitou sangue e perdeu a força e ficou de cama uma semana, duas semanas, três semanas...
A mulher do vizinho pegou no filho mais pequeno ao colo e dirigiu-se a casa de Maria e encontrou-a derreada, os olhos fundos, a pele cor de cadáver, a beleza esvaída, a juventude inutilizada.
– Sei que vais morrer – disse-lhe calmamente.
Maria ficou quieta, como se não tivesse ouvido.
– Só queria dizer que toda a vida te roguei pragas e penso que vais morrer por causa disso.
Virou-lhe as costas e no limiar da porta voltou-se, sempre com a criança ao colo, e disse:
– Morre, sua cabra.
Nesse mesmo dia, ao cabo de tantos anos, o marido tornou a visitá-la. Vinha fardado e trazia a espingarda com que partira para a guerra e encostou-a num canto e aproximou-se da cama onde sua linda mulher jazia a sonhar consigo e ela, ao vê-lo tão perto, disse:
– Desculpa, meu amor.
Ele abanou a cabeça, a dizer que não tinha importância, e estendeu-se ao seu lado e abraçou-a com carinho e ternura e ficou assim até ela morrer.
Já o vizinho passou a andar como se não fosse deste mundo. Descurou o trabalho, não prestava atenção aos filhos, muito menos à mulher, andava desligado da subsistência do lar e todos os dias bebia litros de vinho na venda, cuspia violência, dizeres furiosos, envolvia-se em brigas, espancava e era espancado e quando chegava a casa batia também na mulher e nos filhos e gritava, enlouquecido:
– Ela morreu! Ela morreu!
Certa manhã, reparou numa corda pendurada numa parede da loja onde guardava a ferramenta e teve uma ideia e a partir desse dia não falava de outra coisa que não fosse da ideia e era uma ideia do caraças, dizia ele a toda a gente e as pessoas ficavam intrigadas, até que certa noite não chegou a casa e na manhã seguinte, quando no ar ainda havia lembranças do escuro, deram com ele suspenso pelo pescoço no galho mais baixo do castanheiro ao lado da casa. Por baixo dos pés, o seu cão estava enroscado a dormir.
A mulher caiu de joelhos. Gritou. Os gritos chamaram gente, toda a gente.
O irmão do suicida foi a última pessoa a chegar ao local da tragédia. Ao vê-lo pendurado na corda, encheu-se de ódio e pensou: Quem é que vai pagar por isto? Pensou quase em voz alta: Quem é que vai pagar pelo trabalho daquela puta? E olhou, como se faiscasse lume, para o filho de Maria, uma criança atónita sem saber para que lado se virar naquele quadro de morte e pesadelo.