Era setembro e a viagem longa. Lá fora, o calor do verão que gasta os últimos dias ao sol. Dentro, a inquietação de quem caminha rumo a um desconhecido familiar.
O comboio é quase igual a todas as viagens, a baralhar a paisagem na velocidade e a deixar a breve sensação de que as árvores correm mais do que as nuvens, apesar de presas ao chão. Tal e qual como o coração, que parece chegar antes do fim da viagem, que já se embala nos braços que esperam que a história se concretize.
Passam os rios dos livros de História e os outros que só o tempo traz. Passam as estações principais e os apeadeiros até à casa final.
Ali estavas tu à espera, com a imagem reconstruída das palavras. Já não sou bem esse, nem bem este, sou o cão cheio de feridas, mas ainda de coração terno. Ainda aquela firmeza de ser cão e acreditar no poder da mão que transporta a ternura e tudo o que dentro dela pode salvar. Mesmo que a salvação seja apenas por instantes, mesmo que seja apenas por aquele breve momento do tempo dentro do qual todos conseguimos ser imortais.
Fez-se o caminho que havia de se fazer nosso à força de o percorrermos. Fez-se a casa em marcha-atrás. Fez-se a entrada pelos livros, e a tua mão a guiar por todos os cantos do doméstico por vir, como que a ensinar o princípio do mundo.
Ainda pela tua mão, agora já concreta na minha, fez-se o jardim e as sombras, e a confissão de um regresso a todas as possibilidades por fora de tudo o que já se tinha perdido e do que, de dentro, se perdia para sempre. Mas ainda era cedo na história para antecipar o fim.
Fez-se depois a cabeça pousada no colo e a mão a seguir a cicatriz, como se fosse possível curar a ferida de fora para dentro. Fez-se a confissão de toda uma vida. Ela havia de repetir o gesto mais tarde. Havia de repetir o gesto no fim. Mas ainda era cedo para o fim.
Fez-se, por isso, a despedida e todos os regressos futuros.
Esta seria uma história de felicidade breve e de tristeza imensurável. Seria tudo como um conto de fadas avariado no seu mecanismo de final feliz. Nem vida para sempre, nem felicidade dentro dela. Nem uma coisa, nem outra. Apenas dois crédulos perante a morte que avançava naquele silêncio das coisas que se acercam da sua finitude certa.
Mas também ainda era cedo para isso. O comboio estava à espera e com ele todos os transportes possíveis dos futuros por vir.
Também já lá estava algures a última viagem, o último regresso, a última chegada, a última volta à chave. Mas também ainda era cedo para isso. Era, por enquanto, a imortalidade em setembro. E a morte era palavra de outro mês e de um verão que se iniciou com uma chuva de inverno. Aí, nesse futuro, já não existiria a barca e o cão. Já não haveria salvação, nem o princípio da casa. Mas, por agora, é setembro e somos imortais. Deixemos as coisas assim, para já.