Não resisti a copiar um sticker que me enviaram no whatsapp num daqueles momentos com muito trabalho. Mas é um sticker que pode bem ser sinónimo do “está tudo controlado” com que paternalisticamente nos brindam a cada início, meio e fim de tragédias como a aluvião, os fogos, etc., etc. E até sentimos uma mão que nos passa pela cabeça e reconforta para logo a seguir termos a consciência de que a mão pesa e tudo vai piorar.
Conheço o pavor do fogo que avança, de só ter uma via de fuga e, por isso, de ter o carro pronto com as coisas mais importantes. De ajudar a tirar das habitações os moradores mais frágeis, de ver a solidez das casas a desfazer-se em labaredas. Décadas depois, ainda transporto comigo a noite em que a escuridão se pintou de chamas e havia ramos vivos de fogo e faúlhas que nos caíam ao lado como plumas, era difícil respirar e o rumor da madeira que estalava não se sabia se vinha de fora ou de dentro de nós.
Felizmente, um helicóptero e dois aviões estiveram lá para ajudar numa paisagem muito parecida com a Madeira, montanhosa e com alta densidade de material combustível. Triste, um morador, no adro da capela, um dos pontos do qual se via o fogo subir as encostas à nossa volta, dizia: “quando isto acabar, a zona verde protegida vai ser a zona negra desprotegida”. Ficou negra durante anos e anos. Até que a natureza foi mais forte. Ficou como antes? Não.
É por isso que compreendo bem o desabafo do Prof. Dr. Miguel Sequeira no Facebook: “Todos os anos levo os meus alunos ao campo... obviamente fazemos várias levadas. Ultimamente tenho-lhes dito para se despedirem. Digo-lhes que guardem as imagens no coração. Digo-lhes que tudo irá desaparecer. Em fumo.” Os homens e a floresta endémica fazem parte de um sistema único, mas é a irresponsabilidade dos homens e das suas políticas a destruir a floresta.
Já sabemos pelo vice-presidente da Asprocivil que não se aprendeu nada em 14 anos, que se devia ter atacado o incêndio com meios aéreos de forma determinada logo no seu início, que se devia ter apostado no aumento desses meios, que se devia ter pedido ajuda imediatamente, porque as condições geográficas da Madeira são conhecidas, mas vou aproveitar para lembrar que ainda em janeiro a então deputada do PS engenheira Sílvia Sousa Silva alertava mais uma vez para o perigo que se teimava em ignorar. Nessa altura, apresentou um projeto de resolução que recomendava ao Governo Regional a realização de uma avaliação independente pós-incêndios que identificasse os riscos associados às vulnerabilidades da floresta regional, de modo a salvaguardar a segurança do território e da população no futuro.
Apontava Sílvia Silva o facto de o Governo Regional ter assegurado que tudo estava sob controle e ter defendido o sucesso das políticas florestais, deixando, no entanto, que em outubro de 2023 se voltasse ao mais do mesmo. Tinha sido essa mesma política regional que “permitiu que ardessem mais de 8 mil hectares, incluindo vegetação nativa e com interesse de proteção, como há muito tempo não se via. [...] Em matéria de incêndios rurais, o Governo da Madeira é um verdadeiro espalha-brasas. Anuncia muito, faz pouco e, com as suas políticas florestais, transformou o nosso território num barril de pólvora”.
Sílvia Sousa Silva pregava no deserto sobre a falta de estudos em relação às dinâmicas dos incêndios ocorridos há mais de uma década, e em outubro de 2023, que identificassem os fatores que facilitaram a progressão dos fogos no território e apontassem medidas de prevenção, fazendo a avaliação dos impactos dos incêndios na integridade florestal, na biodiversidade, no solo e no ciclo da água, de modo a minimizar as consequências sobre os recursos e a sua disponibilidade.
Podia ter intitulado este texto “Crónica de uma tragédia anunciada”. Mas, “Calma, tudo vai piorar” não só revela bem o desprezo com que foram ouvidas as palavras de Sílvia Sousa Silva, Miguel Sequeira e de outros, tantos, que têm vindo a alertar constantemente para a situação, como também traduz a forma como somos todos tratados.