Desta vez, como tantas vezes antes, eu não sabia o que escrever, não tinha ideias, estava vazio. Acontece aos melhores – podem crer – e aos restantes, como eu, acontece ainda com mais frequência. Ou seja, eu tinha de me obrigar a escrever qualquer coisa, fosse lá o que fosse, até porque estou aqui há nove anos e nunca falhei uma semana. Confirmo a informação no rodapé da página: Duarte Caires escreve à sexta-feira, todas as semanas. É verdade. Antes era à quinta-feira, mas depois, não sei porquê, passaram-me para sexta-feira e eu continuo a dizer o que sinto e vivo e sonho e faço-o sempre de coração aberto, talvez mais do que devia.
Como um bisturi a percorrer a pele – a minha pele – vou dizendo quantas vezes amei, quantas vezes chorei, quantas vezes odiei, vou revelando o que crio e invento e amplio, vou contando as viagens que fiz, os momentos de paragem, as épocas de perda e desistência, vou confessando segredos, certezas, fragilidades e fantasias sem parar, em torrente contínua, torrencialmente, semana após semana, de modo que volta e meia desanimo, perco a noção do tempo e do espaço, fico confuso e caio no meio da estrada, caio no meio do deserto.
– Quem sou eu?
Às vezes, para me animar, sou tentado a falar sobre assuntos que me aborrecem sobremaneira, como as coisas da atualidade mediática e da política e da navegação na internet, esse tipo de temas, juntando a minha voz crítica e enraivecida à de milhares de comentadores e escribas e seguro de que arrecadaria um rol de inimigos de alta envergadura a troco da minha opinião. Porra! Acho que não vale a pena. Não tenho pachorra para isso. Prefiro enfrentar o labirinto da alma e a relação desta com a sofisticada e obscura teia de interesses que condiciona a presença de qualquer indivíduo no mundo.
No fundo, eu falo acerca de tudo, ora de forma explícita, ora implícita, talvez até mais do que devia, sobretudo nas entrelinhas – esse lugar onde a verdade é sempre exposta de modo perfeito –, mas às vezes não tenho mesmo nada para dizer, nem sequer aí, nas entrelinhas, e caio no meio da estrada, caio no meio do deserto.
– Quem sou eu?
Hoje a Pat aconselhou-me a escrever sobre qualquer coisa menos morte, dinheiro e solidão. Ela diz que já não há quem aguente as minhas histórias e dissertações acerca desses temas e eu fiquei a pensar que, partindo deste princípio, certamente também já não há quem suporte as minhas narrativas sobre África, o amor e a melancolia, ou sobre a infância feliz, a família extinta e as zonas altas do Funchal, muito menos as minhas ficções e teses sobre Deus, o Diabo e o nada absoluto das nossas vidas, entre tantas outras coisas que tanto me ocuparam por aqui nos últimos nove anos e fiquei triste por isso.
Fiquei triste porque senti que a escrita, afinal, pode não valer a pena, independentemente do grau de qualidade e profundidade, e se assim for – pensei eu – a minha vida pode também não valer nada, independentemente do impacto que tenha no meu ser e no ser das pessoas que se cruzam comigo, agora e ao correr dos anos.
Naquele instante quis parar, sim, quis parar, nunca mais escrever, como se não houvesse nenhum ontem para contar, nenhum amanhã para sonhar, nenhum hoje para carpir ou louvar e uma vez mais caí no meio da estrada, caí no meio do deserto.
– Quem sou eu?
Então a Pat desafiou-me a escrever, por exemplo, sobre sexo.
– Implícito ou explícito? – Perguntei-lhe.
Ou, se calhar, não perguntei. Sim, não perguntei. Na verdade, limitei-me a pensar no assunto – o sexo é sobretudo pensamento – e pouco depois fomos para a cama...