No domínio da mitologia o deus romano Jano é representado como tendo duas faces, as quais olham em direções opostas. É o deus das mudanças e das transições, cuja dupla face simboliza, também, o passado e o futuro.
Depois de décadas de previsibilidade institucional na ordem mundial, têm surgido diversos novos atores, alterando significativamente o anterior equilíbrio. São países que navegam mares multipolares, com uma dualidade semelhante à de Jano, tentando simultaneamente jogar pelas regras do passado enquanto assertivamente calcorreiam novos corredores de poder.
No atual conflito entre Israel e o Hamas, o Qatar tem surgido como intermediário fundamental para o desescalar do conflito. O Qatar, que ao mesmo tempo financia o Hamas - inclusive dando abrigo às altas patentes desta organização terrorista – é também o país que surge como grande herói na libertação dos reféns que já conseguiram regressar a Israel depois do brutal ataque de 7 de outubro. Um novo papel que insufla a autoestima do Qatar, como se notou esta semana, quando deixaram o presidente da Alemanha a aguardar quase meia hora, parado na porta do seu avião em Doha, para ser recebido pelo ministro dos negócios do emirado absolutista do Qatar.
Esta dualidade diplomática demonstra quer a crescente influência política de países outrora “ignorados” pela agenda internacional, como que a mesma só cresce porque há outra que diminui. Assim, demonstra-se também a progressiva perda de peso institucional dos EUA e da Europa, seja na tentativa de resolução de conflitos, como em dossiers complexos (como a proteção do ambiente) e até noutros temas mais “ligeiros”, como o desporto, pela realização de eventos internacionais (como o Mundial 2023).
A dupla face política encontra-se em plena ação esta semana com o arranque da COP28 – a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, que tem por grande objetivo a redução da emissão de gases de estufa e a avaliação do progresso no tratamento das mudanças climáticas. Não só é polémica a localização desta conferência (nos Emiratos Árabes Unido), como também a própria escolha da pessoa a presidir os trabalhos. Quem é o anfitrião? O CEO da ADNOC, uma das mais poderosas petrolíferas do mundo: Sultan Ahmed al-Jaber, o homem que a BBC acusou de querer aproveitar a Cimeira para realizar negócios petrolíferos. Assim, temos ao mesmo tempo a versão dos Emiratos que pretende olhar para o futuro das mudanças climáticas e da cooperação internacional para reduzir os efeitos das mudanças climáticas, como a outra em que a sua principal fonte de rendimento é precisamente a extração petrolífera, tão nociva ao planeta. Mais uma dualidade.
Sugestão da Semana: a propósito do ambiente, saúda-se a conjugação das pastas do Ambiente com a Agricultura no novo governo regional. Sabemos bem que a agricultura que se pratica na Madeira não é de natureza intensiva e por isso as agendas não são antagónicas como noutras regiões. É por isso essencial o arranque do novo quadro de apoios comunitários à agricultura na Madeira, antes da época de plantação de novas culturas (trabalhos em março/abril), de forma a potenciar a agricultura que simultaneamente protege o ambiente através da lavoura e fixação da população. Estou certa que as autoridades competentes terão em conta este calendário.