Tinha pálpebras descaídas e olhos de alcoólico, carregados de dor. O seu olhar não deixava ninguém indiferente e quando falava, o que raramente acontecia, as palavras vinham também impregnadas de sofrimento. Era um homem medonho e ao mesmo tempo belo e misterioso.
Vivia nos arredores da cidade, numa urbanização rodeada de árvores ainda pequenas e tenras. Os candeeiros eram mais altos do que as árvores e à noite emanavam uma luz amarela e intensa, mas triste. Era uma zona sossegada, sem bares, sem restaurantes, sem supermercados e mal se viam pessoas na rua, como se o local estivesse abandonado.
Quando ele saía do escritório, no centro da cidade, dirigia-se a um bar, duas ruas acima, e sentava-se num canto a beber cerveja e ficava ali até à meia-noite e às vezes comia uma sandes mista e as três empregadas olhavam-no intrigadas e entreolhavam-se e trocavam sorrisos entre si.
As empregadas eram mulheres novas e vulgares, de estatura média, duas morenas e uma de pele alvíssima e cabelos loiros, mas havia nelas laivos de beleza oculta, como em qualquer pessoa – ora pareciam sensuais e atraentes, ora apagadas e feias. A de pele branca era a mais baixa e desconsolada, mas a que ele considerava mais bonita e, por isso, tentava sorrir-lhe do fundo do seu silêncio sem nunca o conseguir.
Regressava a casa de autocarro ou de táxi e subia devagar a escadaria até ao quarto andar e depois descia para o terceiro, onde morava – estranho hábito que sempre teve e nunca foi capaz de explicar. Preparava uma refeição ligeira e depois enchia uma garrafa de água e levava-a para o quarto e durante a noite acordava e bebia a água quase toda.
Ia para o escritório quase sempre a pé, como hoje, e leva sempre a sua pequena bolsa de couro a tiracolo e a bolsa contém um álbum de fotografias – ele e a mulher ao longo dos cinco anos em que viveram juntos – e ele cuida da bolsa com profunda devoção e todos os dias lembra-se do que lhe dizia a mulher quando discutiam por motivos estúpidos, hoje também:
– A felicidade é uma coisa muito grande e normalmente pertence ao passado.
Ele vai pela rua abaixo com a bolsa de couro a tiracolo e move-se como se estivesse parado junto à campa da mulher no dia em que ela foi enterrada na terra vermelha e húmida, nunca mais a esqueceu, a terra vermelha e húmida, e nesse dia, contra todas as probabilidades, sorriu para uma criança que passou perto do cemitério e depois nunca mais o fez para ninguém. Ela morreu, ele também.
Hoje há de beber muito e os seus olhos estão outra vez cheios de dor e ele bebe cerveja gelada e depois uísque seco e depois cerveja e mais cerveja e por fim bebe um brandy em balão aquecido e depois deixa de atinar com os rostos das três empregadas e com os quadros que decoram o espaço e então sai do bar pouco antes da meia-noite, ele sabe que ainda não é meia-noite porque o salão de bilhar que fica logo abaixo ainda está aberto e de lá brotam vozes de homens e o som de tacadas fortes e ele imagina as bolas a rolar sobre o tampo verde das mesas até caírem nos respetivos buracos e os homens atentos a beber cerveja pela garrafa e isso distrai-o e anima-o por um instante, ali quase a dobrar a esquina da rua que conduz à praça de táxis, talvez a rua mais escura e escusa da cidade, e de repente dois vultos saem da parede, um arranca-lhe a bolsa de couro, o ouro, o ouro, o outro espeta-lhe a lâmina na barriga e ele cai de joelhos sobre os paralelepípedos, fraco, quase surdo.
Ainda ouve alguém dizer:
– Corre, corre.
Agora está totalmente estendido sobre as pedras negras do caminho e sente-lhes o cheiro poluído, o cheiro do chão da cidade, tão distante do perfume da terra vermelha e húmida que cobriu a sua mulher há tantos anos, meu Deus, há tantos anos, tantos anos de solidão, tantos anos de saudade, tantos anos de dor e daí arranca-a e trá-la de novo à vida para a beijar como naquele tempo, todos os dias quando chegava a casa, todos os dias quando saía de casa, e deu-lhe esse beijo e tremeu de frio porque os seus lábios eram já os lábios de um cadáver estendido numa rua da cidade.