Não se pode de modo algum dizer que São Mulevala dos Olhos Azuis é um homem de muitas palavras. Antes pelo contrário. Ele passa a maior parte do tempo em silêncio ou, se preferirem, em meditação. Fica horas e horas dentro da caverna, ou sentado no topo do Monte Mulevala a olhar para o infinito, ou então estendido ao sol na margem do ribeiro que por lá corre e também se chama Mulevala e fica estendido simplesmente a olhar para o céu ou a viajar para lado nenhum através da forma das nuvens.
Um dia, quando se dirigia para o lugar de meditação à beira do Ribeiro Mulevala, escorregou por uma ribanceira abaixo e caiu dentro duma poça de água que o engoliu por inteiro. Este foi o primeiro banho de São Mulevala dos Olhos Azuis em muitos meses.
O anacoreta ficou irritadíssimo com aquele mergulho inesperado. Barafustou dentro de água. Agrediu a água. Insultou a água. Depois, agarrou-se desesperado a uma pedra e tentou sair dali, mas a pedra estava escorregadia e ele voltou a cair e a ser engolido por inteiro. Então, rendeu-se. Tirou a roupa, ou os farrapos de roupa, e ficou mais de uma hora dentro da poça, pensando em coisas líquidas, não apenas em água, mas também em leite, em vinho e cerveja, em sumos de fruta, em ácidos e explosivos líquidos. Posto isto, passou a dirigir-se para o local de meditação na beira do ribeiro por outro caminho, bem afastado da margem.
Um dia, alguém perguntou-lhe por que não tomava banho e ele respondeu sem pensar:
– Porque sou um homem.
Dito isto, São Mulevala dos Olhos Azuis sentiu-se iluminado. Compreendeu, com uma transparência inexplicável (e por isso absurda), que tudo o que fazia ou deixava de fazer era por ser um homem, um ser humano. Apenas por isso. Nada mais. E o mesmo acontece com toda a gente, pensou ele. Todos fazem aquilo que ao homem compete fazer. Nada mais. Este é o segredo da presença de Deus entre nós, pensou ainda.
Deus liberta-nos sobre o seu próprio corpo, que é tudo o que nos rodeia. Deus não existe para intervir, mas para se revelar. Ele está a toda a hora em toda a parte para que todos tenham a possibilidade de o encontrar. Deus está em cada uma das pétalas das flores que enfeitam o palácio do tirano, como na peçonha que infesta a choupana do miserável; está na estrutura do fórceps que puxa uma nova vida para o mundo, como no corpo da bala que voa apressada ao encontro do coração duma criança, por exemplo agora em Gaza; está na hora da luz e no momento do terramoto; está no tempo do grito angustiado e no instante da felicidade pura; está na vida dos mil órfãos a quem o padre X ajudou a crescer felizes, como nos cinco ou dez que violou sistematicamente ao longo da primeira infância, ferindo-os de morte para sempre, e também está na vida inteira do padre X.
Deus está no silêncio dos que sabem e calam e na cobardia dos poderosos, Deus está no medo e na coragem de todos, pensou São Mulevala dos Olhos Azuis, sentindo-se aureolado, ou talvez esgazeado, como se fosse um antigo santo do deserto. Deus existe para se mostrar, nunca para nos deitar a mão, pensou ainda. Jamais Deus nos deitará a mão, concluiu.
É claro – diga-se de passagem – que ele já sabia tudo isto há muito tempo, quer dizer, já tinha pensado vagamente nestas coisas. Mas nunca as tinha visto com tamanha evidência e nitidez. Então, disse-o às pessoas. Disse-o humildemente, embora se tratasse de uma grande revelação.
– Eu não tomo banho porque sou homem.
E reforçou:
– Eu faço aquilo que ao homem compete fazer.
Mas as pessoas não aceitaram tal coisa. Ou, se calhar, ele não soube expressar-se devidamente, não foi capaz de lhes tocar no coração. Seja como for, as pessoas não admitiam que ele não tomasse banho só por ser um homem. Era o que faltava. No seu entendimento, devia passar-se justamente ao contrário. Contudo, como gostam muito dele e têm-no por sábio e santo, nunca mais ninguém abordou o assunto da limpeza e dos banhos. Se São Mulevala dos Olhos Azuis não se quer lavar, tudo bem. Não há problema nenhum.
E continuam a ouvi-lo...