E, então, eu vi aquela menina e ao vê-la foi como se visse o mundo pela primeira vez, porque ela era igual ao mundo...
Andava a passear sozinho em Quelimane há várias horas, enquanto esperava o voo para Maputo, onde embarcaria rumo a Lisboa no dia seguinte, e naquela ocasião não sabia, nem tinha como saber, que nunca mais voltaria a Moçambique. Pelo menos até hoje não voltei. Os últimos carimbos no passaporte datam de 03 de outubro de 2015 (entrada) e 31 de outubro de 2015 (saída). Já passaram dez anos. Mas, enfim, a história ainda não acabou e daqui até morrer, sei lá quando, talvez hoje, amanhã, ou daqui a muito tempo, tudo pode acontecer, tudo é possível.
A meu ver, qualquer chegada alberga o princípio da eternidade, tal como qualquer partida contém a semente do fim absoluto, de modo que naquele dia, em Quelimane, eu dizia adeus a cada passo que dava, tendo percorrido a cidade de ponta a ponta, uma cidade tão quente e húmida e cheia de bicicletas, sempre a dizer adeus – adeus Zambézia, adeus Moçambique, adeus África.
Durante o passeio, tantas coisas do passado vieram ter comigo. As viagens que fiz enquanto lá vivi, tudo o que vi e senti, tudo o que me aconteceu, o bem e o mal e aquilo que ainda não sei classificar e se calhar nunca serei capaz de classificar, tudo o que em mim foi solidão e tudo o que nunca teve explicação – a força que me empurrou para lá, o vento que de lá me afastava – a minha aprendizagem, o meu legado, tudo o que hei de recordar para sempre e o que vou esquecer antes de morrer, o que tinha já esquecido.
Em dois ou três momentos, chorei. Estava sozinho e chorei. Noutros tantos esforcei-me para conter as lágrimas, porque estava no meio de gente, num bar a beber uma Manica gelada, numa rua movimentada, num restaurante a comer frango à zambeziana e não queria que me vissem a chorar, não por vergonha, eu nunca tive vergonha de chorar, mas também não sei explicar porquê, talvez por consideração pelos outros, sei lá, consideração pelo seu sofrimento, pela sua miséria, mas aí chorei para dentro e era como se tivesse perdido o amor da minha vida, coitado de mim – um gajo tão sensível numa terra tão intensa.
Sentei-me debaixo de uma árvore de copa frondosa e fiquei lá um bom bocado. A certa altura, olhei para cima e reparei que havia dezenas de morcegos pendurados de cabeça para baixo nos galhos e esta visão fez-me pensar em qualquer coisa extremamente sólida, mas irremediavelmente indefinida, qualquer coisa que me dizia que o amor também é assim – dorme de dia e voa à noite. Qualquer coisa vaga e imprecisa que me indicava que o amor é feito de cedências, desistências, submissões, mágoas, cansaços e frustrações e só vale a pena, só vale mesmo a pena se formos capazes de resistir o tempo necessário para fazer a somatização dos seus males e atingir a plenitude.
Caso contrário, pensei já a chorar, quebra-se o elo e o sentimento morre, ou torna-se inócuo, inofensivo, e é por isso que as pessoas se separam ou transitam para universos paralelos – o fingimento, a negação, a traição, o ódio – de modo que no fim não há nada melhor do que partir, tal como antes também não houve nada melhor do que chegar.
Sim, havia qualquer coisa naquela árvore em Quelimane que me dizia ser imperioso perder uma parte substancial de mim para então afirmar a minha presença no mundo e, de repente, dei-me conta de que estava quase na hora do meu voo. Levantei-me e avancei na direção da avenida marginal. Queria dizer adeus ao Rio dos Bons Sinais antes de partir e foi lá, na marginal, que eu vi aquela menina e ao vê-la foi como se visse o mundo pela primeira vez, porque ela era igual ao mundo.
Estava sentada num banco com a mãe, ou com uma mulher que eu presumi ser a mãe, e era linda, com um vestido branco, o cabelo trançado com missangas coloridas nas pontas, os olhos brilhantes e a pele negra lustrosa, um sorriso meigo, doce, imenso. Não teria mais do que seis anos, oito no máximo, e estava feliz, estava tão feliz, mas eu fiquei brutalmente impressionado ao ver que a sua mão esquerda fora amputada e o coto tinha uma ligadura fresca, como se a desgraça tivesse acabado de acontecer. Ela, sim, tinha perdido uma parte substancial de si e teria de viver assim a vida inteira, ao passo que eu andava ali apenas a filosofar.
E, por isso, uma vez mais chorei...