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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

28/06/2024 08:00

Parece impossível uma coisa permanecer tanto tempo no mesmo lugar. A barraca fica no meio de um bananal, na beira de um socalco, e dali vê-se a estrada ao fundo, a mesma por onde ele agora vai, às quatro e meia da madrugada, e depois olha para trás e vê duas luzes que se aproximam. Estende o braço.

– Você vai para onde? – Pergunta o motorista e antes de ouvir a resposta adianta:

– Você fechou mal a porta.

Ele abre a porta e torna a fechá-la com mais força e diz para onde vai.

– Não é por aqui, é por ali – diz ele a dada altura do percurso, quando percebe que o taxista está a tomar uma direção errada.

Quer dormir. Sente-se doente. Morre todos os dias e tem medo de deixar de ser ele mesmo. É fraco, sabe-o perfeitamente. O chão que pisa é toda a sua consciência e também a única morte que o abate todos os dias. Às vezes, fica à espera e fica simplesmente à espera sem que nada aconteça e é quando lhe apetece chorar.

Poeta de merda, pensa.

Chove torrencialmente.

A mulher tem um ar calmo, como se fosse a mesma de sempre, como se não tivesse conhecido os anos daquela união errada. Sete anos. Não. Foram nove. Nada disso. Onze. Foram onze anos e dois filhos, dois rapazes. Porém, não é isso que o atormenta – o tempo perdido –, não é isso, mas também não sabe o que é. Este é o mistério.

Uma vez, há dois anos, ela foi para casa dos pais e levou os pequenos e deixou um bilhete a dizer que se não fosse assim morreria naquele mesmo dia e poderia até não voltar, realçou ela com a sua letra redonda. Não tenho vontade de morrer. Morrer parece tão fácil nesta vida, tão monótono, tão vulgar. Basta deixar os anos passar. Morre-se até num simples olhar.

E, de facto, foi assim que ele a conquistou.

Ela tinha vinte anos e estava à espera de um marinheiro, um tipo que andava sempre no mar. Meu Deus, uma rapariga à espera de um marinheiro! Tudo na vida dela estava à espera desse maldito marinheiro – a família dela, a família do marinheiro, os amigos deste e os amigos dela, que por sua vez também eram amigos do marinheiro. Aquilo parecia o inferno, mas no fundo bastou apenas um olhar. Foi simples. Depois, ele pegou-lhe na mão e disse que só aquilo bastava, só aquilo todos os dias, para sempre, como se fosse possível um homem viver agarrado para sempre ao mesmo sonho.

O primeiro filho nasceu com parto difícil, podia até morrer, e ele andou vinte e quatro horas atarantado nos corredores do hospital, para cá e para lá, como se fosse o próprio a nascer. Depois, nasceu o segundo filho e ele subiu de posto no emprego e começou a notar os dias e notava-os com uma facilidade tremenda, muito para além da velocidade dos ponteiros do relógio.

Será sempre este o sentido da vida, pensa ele agora, defronte da mulher, a mulher a dormir. Um silêncio mau está de guarda à entrada dos seus olhos.

Isto nunca mais vai parar, pensa ele. Vou voltar amanhã e depois e depois e sempre até ao fim, pensa ele agora, sentado na cozinha defronte do frigorífico. Tem uma lata de cerveja na mão e pensa na traição como representação do caos das emoções, uma coisa tão simples, tão simples que até se torna indescritível. É um não se perceber nada, nem o corpo que se tem, nem a roupa que se veste. Nada.

– Ridículo – diz ele em voz baixa. – És ridículo.

Está ali estendido na cama, ao lado da mulher, a mulher a dormir e ele cansado da noite perdida. Um galo canta perto. Bendito sejas tu, rico bicho.

– ... corda... oço... ilhos...

Subiu de posto no escritório. Já não tem de cumprir horários rígidos e até ganha mais por isso.

– Acorda. Vai tomar o pequeno-almoço com os teus filhos.

É verdade, isto faz parte da ordem natural das coisas e da felicidade. Basta tomar o pequeno-almoço com os filhos, dar-lhes um beijo com amor e logo se fica apto para viver e morrer feliz e com lógica.

– Acorda, homem!

A cabeça balança no travesseiro e ele pensa no seu nome, ele diz o seu nome em voz alta. É casado há onze anos, tem dois filhos e uma amante com quem passa algumas noites numa barraca no meio de um poio de bananeiras. Para ser feliz hoje tem apenas de acordar e tomar o pequeno-almoço com a mulher e os filhos e dar-lhes um beijo com amor antes de saírem para a escola. É simples.

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