É tempo de vos falar mais a fundo sobre São Mulevala dos Olhos Azuis. Lembram-se dele? Já o mencionei em duas ou três crónicas. É aquele tipo que vive numa gruta, algures na Alta Zambézia. Eu não o conheço, mas ouvi dizer muitas coisas a seu respeito. Inicialmente, até pensei que fosse um escritor louco perdido em África. Mas não. Ele não é escritor, nem louco. Vejamos, então, quem é esta figura tão estranha e misteriosa.
Ora bem, três meses depois de ali ter chegado – estamos a falar de um lugarejo no fundo de Moçambique – São Mulevala dos Olhos Azuis, ainda longe de ser considerado santo e de ter este nome, observou um gato preto a caminhar numa estrada de terra batida e o bicho foi direitinho a uma poça de pó que havia no meio do caminho e sobre a qual incidia a luz do candeeiro de iluminação pública.
A noite tinha acabado de chegar, mas era já muito escura.
O gato preto saltou para o meio do pó e rebolou. Esticou-se de patas para o ar. Voltou a rebolar e tornou à posição de patas para o ar. Permaneceu assim durante algum tempo, seguramente a contemplar o Cruzeiro do Sul, pois o céu estava limpo e todas as estrelas da constelação eram bem visíveis, particularmente as Guardas da Cruz, mas também a Rubídea e a Mimosa e a Pálida e até mesmo a Intrometida, isto para não falar da Estrela de Magalhães, a mais brilhante de todas. Contudo, pode ter-se dado o caso de o gato preto não ter reparado no Cruzeiro do Sul, mas sim no Escorpião, que também é uma constelação espetacular. Ou, se calhar, o gato preto não viu nada disto e esteve apenas a pensar na sua vida de gato preto de patas para o ar. Depois, com a mesma sem-cerimónia com que tinha chegado, pôs-se de pé e desapareceu atrás duma árvore, perdendo-se para sempre na noite austral.
(Aqui, no entanto, é preciso notar que o gato preto só se perdeu para sempre na noite austral na medida em que São Mulevala nunca mais o viu. Mas também é importante ter em conta que, enquanto o observava, São Mulevala pensou mil coisas, algumas delas muito intrincadas, dignas de tratados filosóficos, digamos assim, pelo que é legítimo considerar que o gato preto não se perdeu para sempre na noite austral, antes pelo contrário, permaneceu lá para sempre. Ou, para sermos mais precisos, o gato preto permaneceu para sempre incrustado nos pensamentos construídos por São Mulevala naquela noite austral. Assim é que é.)
Do muito que pensou, São Mulevala reteve uma única ideia. Depressa essa ideia ganhou forma de decisão e a decisão tornou-se inexorável: naquele dia não tomaria banho. Simplesmente, não tomaria banho. Ponto final.
Durante a infância, São Mulevala só tomava banho integral uma vez por semana, aos sábados à tarde. A água era aquecida num fogão a lenha, enquanto ele aguardava nu numa tina de metal. Meia hora depois, saía de lá fresco e perfumado, com a ponta dos dedos roxa e enrugada. Vestia roupa nova e ia para a catequese. No dia seguinte ainda se encontrava limpo e assistia à missa da manhã sem exalar maus cheiros. A sujidade principiava a acumular-se a partir de terça-feira. Então, começavam as lavagens cirúrgicas – mãos, cara e pescoço – pés, rabo e sovacos.
Decorrida a infância, e com o advento da água canalizada, os banhos integrais e cheios de sabão passaram a ser diários, de modo que São Mulevala já não se lembrava da última vez que tinha ficado um dia inteiro sem tomar banho. Bem, pensando melhor lembrava-se de quatro dias durante uma viagem, quando ficou retido num aeroporto por causa de uma greve de pilotos, ao que se seguiu uma tempestade de neve. O aeroporto estava repleto de gente. Era o caos. São Mulevala decidiu, no entanto, encarar aqueles quatro dias como um único dia de noventa e seis horas, após o que se seguiu uma chuveirada de três quartos de hora num hotel de luxo.
Agora, porém, movido pelo comportamento do gato preto, o objetivo de São Mulevala dos Olhos Azuis era não tomar banho. Simplesmente, não tomar banho. E assim foi, meus amigos, assim foi, sendo que o resto da história está na crónica intitulada ‘Deus ex machina’, publicada em 18 de julho de 2019...