Era um novembro de meter medo e chovia desgraçadamente, a vomitar trovões. A mulher estava a olhar arregalada para ele, pingando suor, ofegante, a barriga toda inchada e disse-lhe:
– Estou cheia de dores.
E depois implorou:
– Vai chamar a senhora Maria Marta.
Ele pôs-se atento ao som da tempestade e era como se dissesse não vou conseguir chegar lá com esta chuva, é muito longe, é perigoso, mas a mulher revirou os olhos e gritou-lhe:
– Vai já!
E a seguir pensou: Ajudaste-o a entrar, agora tens de ajudá-lo a sair.
– Vai já!
Ele respirou fundo e decidiu ir, não tinha outro remédio. Vestiu o casaco à pressa e enfiou o gorro na cabeça e acendeu a lanterna, enquanto pensava no trilho que tinha de percorrer e era um caminho de cabras, pedregoso, escorregadio, sempre a subir. Abriu a porta de casa e ficou um instante defronte da tempestade, como um bicho diante doutro bicho, olhos nos olhos. Depois avançou em passo apressado, mas contido, agora já sem medo, enfrentando de peito ufano o chão inseguro e a chuva torrencial e o breu tenebroso da noite desalmada que Deus escolhera para lhe pôr a mulher a parir.
– Vamos! – Dizia ele, como se fossem dois e não apenas um. – Vamos!
Pelo carreiro afora, praguejava contra Maria Marta, a parteira, por ter ido morar no alto da serra, o estupor da velha, dizia ele. Puta que a pariu. De tanto puxar gente para o mundo, o estupor da velha ficou com a mania de ser Deus e meteu-lhe na cabeça que tinha de viver nas alturas, acima de todos, velha do Diabo, dizia ele, e agora aqui vou eu no meio deste temporal, puta que te pariu Maria Marta, puta que te pariu. E, de facto, fora exatamente por isso que Maria Marta tinha decidido ir morar no penedo mais alto da serra, numa casa de pedra que estava abandonada há séculos e que todos diziam ter sido a moradia do primeiro habitante do sítio, um escravo mouro fugitivo, e a casa só tinha um quarto, uma porta, uma janela, uma vida.
– Vamos! – Dizia ele debaixo da chuva, como se falasse com outro. – Vamos!
A parteira fora lá para cima no começo de um verão já muito longe. Era ainda relativamente nova e cheia de força e reabilitou a casa, ajeitou as paredes, cobriu o teto com colmo, limpou os arredores, cortou ervas, bardos e arbustos e de repente o edifício brilhou altivo na solidão da montanha, de modo que no fim daquele verão todos olhavam boquiabertos para a serra e comentavam com grande pasmo o feito de Maria Marta e em todas as conversas o refrão era este:
– Quem diria!
E todos repetiam:
– Quem diria!
Maria Marta vivia do que plantava e semeava em redor da casa, dos frutos e raízes e cogumelos que colhia nas matas e também do que lhe levavam as pessoas do sítio, pois ninguém consentia que a parteira de todas as famílias, apesar de ser meio louca, vivesse de forma insustentável.
Ela fazia as necessidades ao ar livre, mas não tinha um lugar certo para isso. Ora ia atrás da casa, sobretudo à noite, ora metia-se pela vegetação adentro ao calha, sem direção certa, e isto prendia-se com o facto de não querer amontoar a porcaria que vinha de dentro de si toda no mesmo sítio. Entendia que devia espalhá-la por variados pontos, tal como a maldade se espalha por diversos cantos da alma, do corpo e do coração de qualquer ser humano. Um homem nunca é mau por inteiro, pensava ela. E também pensava que a bondade ocorre da mesma maneira, mas não tinha desenvolvido qualquer prática ou filosofia para lidar com isso.
Ali perto, ele abriu as goelas:
– Maria Marta!
Avançou mais uns passos e escorregou quase à beira da porta da casa. Ficou estendido na vereda. A chuva forte esmagava-o contra a pedra fria e os relâmpagos mostravam a imensa fragilidade da sua existência a cada clarão e ele reviveu a vida inteira num átimo e pensou que estava prestes a morrer e também pensou que não podia morrer antes de ver o seu filho e então gritou com toda a força:
– Maria Marta!
E gritou outra vez:
– Venha, Maria Marta! Venha!