É nesta aparente contradição que os portugueses continuam a viver as suas vidas, sofrendo na pele a subida de preços que come ordenados, desfaz poupanças e eleva os juros dos empréstimos até à estratosfera. É verdade que à pandemia se sucedeu a inflação, primeiro, e a guerra, depois, que trouxe a crise energética e ainda mais inflação. Mas o modo como se enfrentam as crises têm muito que ver com o modo como nos preparamos para elas e com o modo como os governos nos ajudam e incentivam a se preparar para elas. Tal qual a história da cigarra e da formiga, o governo socialista não apenas prefere ser cigarra como ainda incentiva a ser cigarra.
Nesta lástima, os socialistas - para quem a estagnação e o atraso são fios condutores - passam incólumes, sem pena ou castigo. O resto é o salário inteiro que os funcionários públicos já perderam (uma evidência), as mentiras contadas e somadas aos pensionistas (outra evidência) e a manutenção dos esquemas e fraudes habituais (várias evidências), tudo protegido convenientemente pelo guarda-chuva do chefe. E se os escândalos se sucedem, as invenções não param. A realidade é ficção, a ficção é realidade, nada é o que parece, o que parece nunca é. Na venturosa pátria, o oásis inatingível, os saques e o salve-se quem puder são o desfecho de uma maneira de ser e de um modo de estar e de agir, identificados com os suspeitos de sempre. Quem diz ser possível fugir ao destino, nunca conheceu um país como este. O nosso povo é Sísifo acartando perpetuamente a pedra montanha acima, apenas para vê-la rolar ingloriamente montanha abaixo. Uma e outra vez, até ao fim dos tempos ou da agonia. Tudo para glória de uns e pela perdição dos restantes.
O duunvirato
Os próximos 12 meses na RAM prometem. Com eleições previstas para daqui a um ano, há um sistema de roldanas que começa a movimentar a engrenagem, como o verão em parte deixou transparecer. Vai a ritmo lento, mas o movimento é inexorável. Não é apenas o Governo e os partidos da coligação que o sustenta que têm de revelar o trabalho, as ideias e o cumprimento do programa eleitoral, uma responsabilidade superior. É também os restantes partidos, onde lugares, decisões, caminhos, carreiras e possibilidades estão em jogo. Nestes últimos, destaca-se naturalmente o PS, o maior partido da oposição, novamente prisioneiro de uma gestão em duunvirato, uma excentricidade nascida em 2018/2019 e reforçada agora em 2022.
A nova dupla é constituída pelo novo chefe local e pelo velho chefe colocado nas comunidades. O primeiro tenta dar-se a conhecer e joga as fichas todas; o segundo paira no ar e aguarda para ver. O primeiro não reconhece o segundo, mas o segundo sabe quem não quer em primeiro. Nessa ideia, o chefe local vai tentar chegar ao topo por via das promessas e das soluções mágicas e de mirabolantes aumentos de despesa sem diminuição de receita, sem esquecer a servidão ao longínquo, que uns consideram virtude, mas que é defeito.
Já o chefe colocado nas comunidades vai trabalhar indo às festas dos emigrantes, prometendo aviões para todo o lado e, claro, inaugurando serviços digitais para colmatar os serviços físicos que não funcionam e cujo engodo é não funcionar. E não vai esquecer de falar de uma estratégia para as comunidades, que nunca sairá do papel, e de dinheiro, que toda a gente sabe que não há. No fim, a verdade dói de tão óbvia: ninguém pode ter melhor do que ele. O outro coze em lume brando.
Como pode evitar o primeiro a manipulação e a sombra do segundo? Boa pergunta. Mas a política está cheia de amigos da onça e de momentos em que portas fechadas acabam a dar para grandes janelas. De facto, o PS nacional é fértil em promover derrotados para carreiras políticas notáveis. Quanto mais inimaginável é a derrota, melhor parece ser o destino. E exemplos de recentes derrotados com estrondo não faltam: uns viraram ministros das finanças, outros acabaram secretários de estado. Se o novo líder local perceber a lição, perde com elegância e livra-se das chatices e dos histrionismos. Com jeito, e se até os cúmplices dos derrotados estão bem instalados, ainda leva os seus fiéis para lugares cheios de prebendas. Afinal, o pote de ouro não está aqui. Nunca esteve. O caminho é outro, mas é simples. A parte difícil é ter os amigos certos. De resto, não há como enganar.