Fui surpreendido com a vitória de António Costa nas últimas eleições nacionais. A surpresa deve-se à minha alienação sintetizada no divórcio entre o idealismo delicodoce dos românticos e o pragmatismo sincero dos condenados. Por certo, a cair na Europa, com a pandemia a expor a crueza dos serviços públicos, com a incompetência ministerial generalizada e o cansaço natural do socialismo, julguei haver condições para remover a trupe política que nos atrasa. Enganei-me.
Entretanto, entendi quão inútil foi tentar perceber onde os partidos e os líderes políticos erraram neste processo que acabou na maioria absoluta socialista quando nada o fazia prever. E justificações - posteriores - não faltaram para
explicar a consagração socialista. Desde o papão do Chega à falta de carisma ou de assertividade de Rio, passando pela crise política provocada pela farsa do orçamento ou o voto útil, houve luvas para todas as mãos. Mas nada disso
parece-me com peso suficiente agora.
Foi isso que percebi quando li a análise mais pormenorizada de uma sondagem realizada pela Pitagórica à boca das urnas, no dia 30 de Janeiro, e que recolheu dados de 33157 eleitores de 55 freguesias de 18 distritos do Continente. Os dados - extrapolados para 228 mandatos porque ainda há dois mandatos por atribuir - foram tratados por Pedro Magalhães e João Cancela, podem ser consultados no sítio do primeiro (https://www.pedro-magalhaes.org/) e revelam informações e notas interessantes.
Em primeiro lugar, mulheres e homens votam de forma diferente. Por exemplo, se só valesse o voto das mulheres o PS tinha 126 deputados (+8 deputados do que tem agora), o PSD 76 (-1), o Chega 6 (-6), a IL 6 (-2), a CDU 4 (-2), o Bloco 7 (+2), o PAN 2 (+1), o Livre 1 (igual) e o CDS continuava de fora. Mas se só contasse o voto dos homens, o PS tinha 106 deputados (-12 deputados), o PSD 83 (+6), o Chega 15 (+3), a IL 10 (+2), a CDU 7 (+1), o BE 6 (+1), o Livre 1 (ficava igual), o PAN perdia a representação e o CDS não elegia.
Em segundo lugar, há diferenças entre o modo como votam as gerações mais novas e as gerações mais velhas. Por exemplo, se só contasse o voto dos eleitores com menos de 35 anos, o PS tinha 82 deputados (-36 deputados!), o PSD 82 (+5, igual ao PS), o Chega 17 (+5), a IL 24 (+16!), a CDU 5 (-1), o Bloco 10 (+5), o PAN 5 (+4), o Livre 3 (+2) e o CDS nenhum. Mas, por um outro lado, se só contasse o voto dos eleitores com mais de 34 anos, o PS tinha 122 deputados (+4 deputados), o PSD 79 (+2), o Chega 11 (-1), a IL 3 (-5), a CDU 6 (igual), o Bloco 6 (+1), PAN e Livre ficavam a zero e o CDS conseguia um mandato.
Em terceiro lugar, o estudo mostra diferenças entre a escolaridade dos eleitores e as suas opções políticas. Por exemplo, 43% dos eleitores do PS não têm o secundário completo. O mesmo acontece com 36% dos eleitores da CDU, 32% dos eleitores do CDS e 31% dos eleitores do Chega. No sentido contrário, apenas 7% dos eleitores da IL e 10% dos eleitores do Livre têm menos do que o secundário completo. Contudo, se olharmos para os eleitores com frequência universitária, as coisas invertem-se porque 61% dos eleitores da IL têm frequência universitária, tal como 60% dos eleitores do Livre. Os números estabilizam depois nos 46% do PAN, nos 42% do Bloco e nos 41% do PSD. Os partidos com menos percentagem de eleitores com frequência universitária são, não estranhe, o Chega (21%) e o PS (25%).
O que quer isto dizer? Quer dizer que, como uma navalha de Ockham, a explicação mais simples é provavelmente a mais correcta. E que o sucesso socialista está nestas linhas sociodemográficas e não em elaboradas teorias políticas. Na verdade, há mais mulheres do que homens, mais gente com secundário incompleto do que com frequência universitária, mais velhos do que novos e muitas pessoas a viver mais anos, variáveis que tornam mais provável o voto no PS. E se por um momento ainda viu uma esperança de mudança, nesta análise, nos jovens e nos mais qualificados, desengane-se: os jovens são muito poucos, não o são por muito tempo e os muito bons e ambiciosos preferem emigrar a participar na festa.
António Costa percebeu o eleitorado e a sua caracterização, percebeu o erro à esquerda e a abertura que havia à direita, soube falar para os públicos e segmentos certos agitando as as bandeiras e os fantasmas convenientes. E com essas balizas bem definidas transformou uma maioria sociológica numa maioria política, o prémio mais desejado. Teve olho e inteligência. O resto é história.