Quando era pequena e fazia birra para comer, a minha mãe distraía-me contando histórias enquanto me ia enfiando colheradas na boca. Uma das minhas favoritas era sobre um majestoso leão que guardava a porta de acesso a uma sala repleta de brinquedos que me eram detalhados em pormenor: bonecas de todos os tamanhos, trajes e cabeleiras; jogos dos mais variados; livros coloridos; trens de cozinha com miniaturas de todos os objetos que existiam em casa; enfim, tudo o que a minha progenitora imaginava que eu pudesse desejar. Na minha mente, ia visualizando todo aquele manancial de entretenimento a que poderia ter acesso quem conseguisse a chave que o leão ciosamente mantinha sob a sua grande patorra terminada por garras assustadoras.
A narrativa prosseguia com o desfile da criançada que almejava conseguir a chave, sendo que a grande dificuldade não estava numa possível agressividade da fera, mas sim na forma como se lhe dirigiam. Então, chegava o primeiro candidato e ordenava:
— Leão, dá-me a chave!
A minha mãe, enrouquecendo a voz para lhe dar tonalidades de rugido, respondia a recusa perentória do bicho.
A criança afastava-se e logo outras surgiam, cada uma com o seu estilo de abordagem, mas invariavelmente rudes e indelicadas para com o leão. Umas iam ao ponto de ameaçar que lhe cortavam a juba, lhe faziam uma trança, arrancavam um pelo do bigode e tudo o mais que fosse ocorrendo à contadora da história. Eu ouvia, ora sorrindo, ora amedrontando-me enquanto ia engolindo a sopa. Quando esta se aproximava do fim e já a colher raspava o fundo do prato, chegava o menino que haveria de conseguir entrar no desejado salão, porque só ele faria o pedido de forma adequada e que eu já sabia qual era e, por conseguinte, poderia ser eu a contemplada:
— Leão, por favor, dá-me a chave.
E o bicho nem respondia, apenas erguia a patorra de longas garras, permitindo que o menino retirasse a chave, não se esquecendo, antes, de agradecer a dádiva ao guardião, que se espreguiçava, lambia os bigodes e se deitava a dormir, durante o tempo que a criança precisasse para selecionar, de entre todo o diversificado espólio disponível, o objeto que mais lhe agradava.
Eu, de barriga cheia e a ser invadida pela sonolência, ainda de olhos abertos, sonhava ser a menina que entrara na sala dos brinquedos e poderia escolher o meu preferido. Punha-me a pensar qual seria a melhor opção; qual seria aquele de que não me cansaria. Ficava confusa, insegura e temia não ser capaz de tomar a melhor decisão. Acabava por adormecer e só da próxima vez que ouvisse a história, voltaria a sentir a mesma angústia da dúvida.
Lembrei-me desta história, um dia destes, quando estava na livraria. Não porque me impedissem de lá entrar, antes pelo contrário; os estímulos são mais que muitos e o único leão presente, levo-o comigo, nos euros disponíveis na carteira. A oferta é imensa e inúmeros os títulos que me despertam curiosidade. Porém, como só posso escolher o que o "leão" me permite, sou invadida por uma sensação semelhante à do sonho de entrar no salão dos brinquedos da história da minha mãe.