Alta, quase demasiado alta, mais escanzelada do que gazela, pescoço esguio e rosto a fazer lembrar uma ave, cabelo preto e curto, o olhar negro e altivo, sempre confiante, incisivo, às vezes intimidante, o peito raso e triste, as pernas perfeitas e as nádegas também, mas a roupa nunca realçava essa perfeição, antes pelo contrário, desfazia-a, de modo que ela era uma mistura entre o muito belo e o feio, como se a sua construção tivesse sido interrompida devido a uma incerteza do Criador e foi assim que ele a conheceu na universidade, quando ambos tinham 20 anos.
Ele estudava Filosofia e ela Línguas Modernas e fecharam-se no quarto durante três semanas – não foram às aulas e fizeram amor todos os dias, mais do que uma vez por dia e ela deixou de ser virgem e ele também deixou de ser virgem.
Um deles, quase sempre ele, saía de tempos a tempos numa corrida desenfreada que só parava no supermercado e regressava ainda mais depressa e depois comiam pão com queijo e latas de conserva e morangos à sobremesa e bebiam cerveja e faziam amor.
Amaram-se de forma louca, destravada, ininterrupta durante aquelas três semanas iniciais e, por fim, apresentaram-se em público unidos por um estranho laço que nunca ninguém foi capaz de definir com precisão, sendo que só alguns, os amigos mais próximos, arriscavam classificar como amor. De resto, não sabiam o que pensar nem o que dizer, porque a ausência deles era sempre maior do que a presença nos convívios, nos bares, nos lugares do costume.
Viviam noutro mundo e falavam a língua de outro mundo.
No inverno, por exemplo, ela costumava dizer que a chuva tinha o encanto de não parar e que isso fazia com que tudo na vida ficasse mais tarde, mais demorado, e ele abraçava-a e respondia que isso talvez não tivesse assim tanta importância, porque o mistério da chuva na verdade não existia, e ela ficava triste, sim, ela ficava triste porque acreditava em coisas místicas, tal como as pessoas de fé acreditam na alma e nos anjos e no Diabo, e então ele procurava acalentá-la, dizendo que no fundo também acreditava no Deus Chuva.
Ele dizia:
– Acredito no teu Deus Chuva.
Era sempre assim.
Os amigos tinham dificuldade em acompanhar estas conversas, por exemplo ela a dizer à mesa do café que enquanto a chuva não parasse ele devia olhar apenas para a luminosidade do chão da praça e, de repente, naquele dia, ela levanta-se e sai a correr de braços abertos para o meio da chuva e grita:
– Amo-te!
E ele também se levanta e vai ter com ela e beija-a no meio da praça e diz que a ama assim toda molhada no meio da chuva – o Deus Chuva – e ela diz em sussurro:
– Vamos fazer amor num lugar longínquo, mas perto do mar.
Meteram-se num autocarro nesse mesmo dia e fizeram uma viagem de quatro horas sempre debaixo de chuva e chegaram a uma vila na costa onde as ondas eram altas e espantosas e alugaram um quarto numa pequena pensão e ficaram lá três dias e ele agora lembrava-se disso com profunda clarividência, talvez por ser inverno outra vez, talvez por estar a chover incessantemente há várias horas, talvez por se sentir sozinho, tantos anos depois sempre com a mesma mulher, o amor da sua vida, já com dois filhos adolescentes, um rapaz de 15 e uma rapariga no primeiro ano da faculdade, na mesma universidade, igualmente disponível para amar sem freio, pensava ele, tão maçado com o emprego na administração pública, da sua parte nada que ver com Filosofia, da parte dela nada que ver com Línguas Modernas, apenas uma profissão para ganhar dinheiro e subir na carreira e ganhar mais dinheiro, os dias sempre iguais, ele mais gordo, ela ainda mais gorda do que ele, já sem fé no seu Deus Chuva, agora muita prática, sempre muito cansada, muito atarefada e ele a perder-se todos os dias no olhar de outras mulheres, para já apenas no olhar, a espreitar sites pornográficos para matar saudades da pornografia do amor no tempo inaugural, aquelas três semanas magníficas fechados no quarto, sim, o eco do amor perfeito morreu no seu coração mas ainda persiste no pensamento e agora ele a chegar a casa, ele a dizer:
– Está a chover sem parar há tanto tempo.
E ela estendida no sofá, indiferente:
– Adormeci e não dei por nada.