É sempre com tristeza, para não confessar coisa pior, que ouço detentores de cargos de responsabilidade a justificar as suas acções menos benévolas com as benfeitorias que estas trazem. Justificam os meios utilizados com os fins almejados. É nesta lógica que se defende a execução de vis opositores ao benévolo líder, a expropriação de quase todo fruto do nosso trabalho em impostos para o bem, ou mesmo a suspensão da decência humana para evitar o contágio de uma doença. Pelo bem, ainda mais o bem comum, pode até dar-se um tiro no candidato mais asqueroso — fazer batota. Tudo justificável, pelos vistos. Mas não foi assim que fui educado, perdoem-me os mais iluminados.
Quando vejo um ministro, por exemplo, justificar uma circunvalação à transparência e ao quadro legal que jurou cumprir com o bem geral que tal empreitada traria ao país, escolhendo ele com quem, onde e como, claro, apetece-me esbofeteá-lo — a bem da comunidade, claro. Quando vejo um secretário-geral de um partido com responsabilidade justificar a retirada de dinheiro de mais do que uma empresa pública, por parte de um ministro de um governo do qual também fez parte, para mascarar as contas públicas ao olho do auditor europeu (e do eleitor doméstico), sinto que o bem da comunidade exigiria mais que um tabefe. Mas a verdade é que a comunidade cujo bem pretendo não se dá ao respeito. Eleva e elege esta estirpe, aberta a tudo o que lhe dê votos, mesmo que tenha de ignorar a consciência (aqueles que ainda a sacrificaram de vez). São escolhas. O problema é que acabam por afectar aqueles que, como eu, preferem ter os fins como prémio pela eficácia dos meios usados dentro da decência.
Putin da Rússia, do alto da sua messiânica missão de devolver a glória passada à Mãe-Rússia (no fundo, Make Russia Great Again), reduz a escombros a Tchetchénia (duas vezes!), invade parte da Geórgia e (entre mais algumas coisas em nome da Pátria) tenta fazer da Ucrânia o seu jardim de cinzas e obedientes lacaios, justifica os meios pela sua incumbência divina. É, no fundo, esta a via racional de rufias (diz-se bully, agora, não é?), de crianças recém-chegadas ao bipedismo, ou de ditadores e afins, sejam estes efectivos, latentes ou esperançados. Têm uma imagem do seu ideal comunitário, mas, como há quem não partilhe desse ideal, mandam a decência às urtigas e ignoram a liberdade alheia para discordar, que tanto atrapalha o “p’ogresso”. A transformação do país num grande conglomerado de empresas públicas, onde não há espaço para qualquer avanço sem o aval do Estado — personificado, claro, pelo Grande Planeador. Também, que raio, onde já se viu querer algo fora do Estado, ou sem o carimbo do Estado. Ele há cada uma! Seria o caos...
Só que não. São os meios que justificam o fim, por mais que digam o contrário os estudiosos de Maquiavel. É com decência que se merece decência. Com falácias apenas conseguimos vitórias vazias, edifícios sem alicerces e dores na consciência (para quem a tem).
A culpa, admire-se o leitor, não é (só) dos políticos que elegemos. É também dos sinais que damos quando neles votamos. Não há ninguém decente em quem votar? Talvez já seja tarde, então. Os sinais estão dados e a porcaria feita. É isto? Também é possível levantar a voz de cada vez que um ministro usa métodos escusos na sua acção, principalmente se for em nosso nome. Gosto de pensar que somos melhores que isso. Sou um ingénuo irritante.