Todos os dias, naquelas férias em novembro, iam tomar café ou beber cerveja no restaurante junto à praia, mesmo ao lado do cais. Às vezes, quando não estava muito frio, sentavam-se na esplanada, mas quase sempre ficavam dentro, numa mesa ao pé da janela e dali podiam ver o cais deserto e o mar sem barcos e as ondas enormes a rebentar na areia.
– Isto é tão diferente da nossa terra – disse o rapaz.
A rapariga não respondeu, mas estava contente e muito bonita. Os seus olhos verdes tinham agora uma tonalidade mais intensa devido à cor sombria do dia e à roupa escura e à boina preta que usava e o facto de estarem isolados na ilha só a animava e alegrava e a fazia brilhar ainda mais, porque era uma rapariga despreocupada, ao passo que o rapaz andava cada vez mais apreensivo. Para ele, tudo estava a ficar difícil, porque o seu espírito era um abismo, mas na verdade tratava-se apenas de mau tempo no mar. Tinham de esperar pelo barco, nada mais.
– Empresta-me o livro – disse a rapariga.
O rapaz empurrou-o sobre a mesa e depois olhou pela janela e viu uma mulher a caminhar no cais, uma turista, talvez de 70 anos, pensou ele, e andava muito devagar, a coxear de uma perna e vestia um corta-vento creme com o capuz enfiado na cabeça. Ao fundo, o porto era uma simples muralha de betão sem expressão e o farol do ilhéu parecia uma ermida no fim do mundo e, de repente, o rapaz lembrou-se da conversa que tiveram na noite anterior, os dois estendidos na cama, lá em cima, na casa que tinham alugado por dez dias, mas onde já ficaram mais três por causa da tempestade no mar.
Ele disse assim:
– E se tu ficas grávida?
Ela respondeu que fazia um aborto, mas depois chorou e disse que tinha medo, disse que eram ainda tão novos para ter filhos e ele também disse que eram tão novos para isso e ficaram tensos, nervosos, estendidos na cama, absorvendo a escuridão do quarto e o rumor do vento forte lá fora, mas depois a rapariga adormeceu e ele levantou-se e pôs-se a deambular pela casa e espreitou por todas as janelas e viu a noite invernosa a crescer e quando estava na cozinha avistou uma barata no chão e durante algum tempo acompanhou o seu percurso e depois voltou para o quarto e viu que a rapariga estava a dormir profundamente e, então, pensou que tudo estava mal, pensou que tudo era o próprio mal e também pensou que seria fantástico fazer do mal uma regra que só existe no fim da vida, como a morte.
Angustiado, sentiu-se tentado a acordar a rapariga, sim, quis sacudi-la, despertá-la, só para lhe dizer isto: Matei agora mesmo um inseto na cozinha e foi terrível, porque o bicho não conseguia morrer, estava sempre a mexer as patas, e eu também não conseguia matá-lo definitivamente. Estava a ficar apavorado e louco, até que coloquei o pé da mesa em cima do dorso e o dorso estalou como se fosse o inseto a gritar de dor.
Mas também pensou que seria terrível acordar a rapariga só para lhe dizer isto e então aproximou-se e beijou-a nos lábios enquanto ela dormia e calou-se como um criminoso e a seguir pensou que todos os crimes são imperdoáveis.
– Às vezes, esta história parece que somos nós – disse a rapariga, ao virar uma página do livro.
Ele sorriu e olhou outra vez para fora e viu que o céu ficara subitamente limpo e o mar já não estava tão revolto e a linha do horizonte era agora visível em toda a extensão.
A velha senhora estrangeira regressava do fundo do cais, com lentidão, a coxear. A certa altura, levou a mão à cabeça e baixou o capuz e os seus cabelos eram brancos e ela desceu os degraus de acesso à praia mesmo ao lado da janela do restaurante e o rapaz notou-lhe no rosto uma expressão de cansaço e solidão, tanto cansaço, tanta solidão, e sentiu-se triste e olhou para a rapariga que estava debruçada sobre o “Jardim do Paraíso” com os braços cruzados em cima da mesa e ela olhou-o com os seus olhos verdes cheios de luz e sorriu com a sua natureza despreocupada e depois continuou a ler.