O meu Natal ainda ecoa o passado. Esse tempo sem tempo, dentro do qual tudo ainda era possível. Desde a crença infantil, até ao futuro, que se desenhava como um espaço infinito, longínquo, por definir.
Éramos todos vivos, os que já não são, e nós próprios, os vivos, mais vivos do que hoje somos. A perda vai subtraindo vida a quem fica. O que se perde, também nos perde um pouco.
Mas, muito antes da perda, a casa enchia-se com o entusiasmo do meu pai, talvez maior do que o nosso. Enchia-se também da azáfama da minha mãe, sempre em atraso, sempre em risco de não haver Natal. A árvore despida no quintal, a tinta demasiado fresca nas paredes, a roupa das camas à espera de ser estendida. Todo um universo em contra relógio, toda uma espera, toda uma expetativa.
Depois, como por magia, e porque a noite era mágica, lá se componham todas as coisas. As searinhas, o menino jesus, a árvore com a gambiarra colorida, o arranjo final da porta da entrada.
Os miúdos, que éramos nós, metidos na banheira, lavados da cabeça aos pés. O conforto do pijama novo. A romaria até ao fogão para colocar o sapatinho, e a luta contra o sono, porque todos os anos eram o ano prometido da descoberta da verdade. Viriam depois outros anos de luta contra a verdade. Crescia a contradição de crescer.
Na noite de Natal, o sono acabaria por chegar, embalado pelos reflexos das luzes da árvore de Natal, e, quando dávamos por isso, já amanhã se tinha instalado.
Corrida em sentido contrário para o fogão. Os sapatos desapareciam por baixo dos embrulhos, e nós apareceríamos de sorriso feito em cima da cama dos pais. Ainda não sabíamos, mas aquelas prendas seriam a nossa mais grata memória de todos os Natais por vir. As prendas e o calor de estarmos juntos.
Esses Natais por vir, nos quais seríamos demasiado crescidos para acreditar, já suficientemente crescidos para nos mantermos acordados, mas também já demasiado adultos para descobrir verdades novas, ou para criar novos mistérios.
Ainda assim, esses Natais haviam de alimentar futuramente uma certa alegria que acompanha esta época, uma forma de regressar à casa da infância sempre que construímos, a tempo, as nossas próprias árvores de Natal, sempre que a noite ainda mágica cai e, mesmo sem sapatinho no fogão, parece que ainda esperamos por algo. Talvez uma memória, talvez um afeto, talvez uma pertença que fica para sempre.
O Natal de hoje tem exatamente a medida certa para caber todos os Natais passados.