O motorista do Isuzu parou num entroncamento e, apontando para o lado esquerdo, ou talvez para o lado direito – o senhor Caires já não se lembra ao certo para que lado o motorista apontou, pois passaram muitos anos desde aquele dia, mais de quinze anos, e até parece que aquele era outro senhor Caires, não o próprio, nem sequer eu mesmo feito personagem dentro de uma longa viagem à procura de mim –, disse assim:
– Vá por aqui.
E acrescentou:
– São mais ou menos dois quilómetros até lá, talvez menos.
O senhor Caires ficou sozinho na encruzilhada diante de uma chama-da-floresta coberta de flores cuja luz do pôr-do-sol realçava de um jeito irreal. Depois, contemplou a estrada que tinha de percorrer, consciente de que não seria o primeiro homem perdido no mundo, perdido em si, a fazê-lo, nem tão pouco o primeiro louco em busca de salvação.
Agora que escrevo isto, lembro-me vagamente de já ter falado desta estrada e deste lugar, que fica no fundo da Alta Zambézia, numa outra crónica. Talvez esteja a repetir-me. Sim, devo estar a repetir-me. Na verdade, já escrevi tanto sobre o mesmo que o mais natural é repetir-me, tal como qualquer pessoa repete o ser e o agir cada dia que passa. Seja como for, naquele tempo o senhor Caires era definitivamente outro.
A estrada descia por uma encosta, atravessava uma baixa onde havia um lago e subia por outra encosta. Era um traço de terra viva entre a vegetação.
O senhor Caires deu uma volta de 360 graus sobre o eixo do seu corpo e identificou vários tipos de árvores e plantas e sentiu-se seguro por isso, pois eram espécies que também floresciam na sua terra distante, do outro lado do continente, no meio do oceano, mas, por outro lado, viu-se perante uma imensa quantidade de flora que não conhecia e isso inquietou-o, levando-o a pensar que estava tresmalhado no meio do mato, quando na verdade se encontrava no meio de um bairro na periferia da cidade.
Isso, porém, só percebeu à medida que foi descendo a estrada e notou, deveras perplexo, que havia casas de tijolo por todo o lado e à volta das casas de tijolo brincavam crianças, dezenas de crianças, e havia cães, muitos cães, e mulheres cirandando para cá e para lá e homens que trabalhavam em pequenas oficinas disto e daquilo, mecânicos, carpinteiros, ferreiros, sapateiros, costureiros e havia também algumas barracas à beira da estrada com produtos como peixe seco, batatas, ovos, tomates, cebolas, sabão em barra, sabão em pó, bolachas, velas, fósforos, isqueiros, cigarros em maço e avulso, óleo de cozinha em saquinhos de plástico transparente, gasolina em garrafas de vários tamanhos, cervejas, refrigerantes, preservativos da famosa marca Jeito, rebuçados, pastilhas elásticas e muitas outras coisas.
Ao chegar ao lago, o senhor Caires parou para o contemplar e notou que a estrada, naquele ponto, funcionava como barragem – de um lado estava o lago e do outro um campo de arroz. O lago não era muito grande, mas a serenidade da água àquela hora deixou-o de boca aberta, a pensar que visões como aquela fazem com que algumas pessoas vindas do além se apaixonem e sejam irremediavelmente arrebatadas por África.
Contemplando o lago, o senhor Caires pensou ainda em tantas outras coisas, a maior parte delas relacionadas com a brevidade da vida e com a impossibilidade de segurar os momentos felizes, coisa que em seu entender é um dos maiores desesperos do indivíduo e uma das grandes guerras perdidas da humanidade.
Meu Deus, tenho quase a certeza absoluta que já escrevi isto noutra crónica, palavra por palavra, mas não consigo confirmar, e também não me importo de o repetir. Afinal, isto aconteceu comigo e eu amo a poesia do acontecimento.
Assim, acabadinho de chegar e metido nestes pensamentos, o senhor Caires não sabia, nem tinha como saber, que no ano anterior – é preciso ter em conta que isto aconteceu há mais de quinze anos – três pessoas se tinham suicidado nas águas daquele lago e uma quarta fora brutalmente assassinada na margem e uma quinta escapara ali de morte certa por milagre.
O senhor Caires começou, então, a subir a estrada.