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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

19/07/2024 08:00

Há vários dias que o senhor Kayros não vê o próprio rosto. No sítio onde se encontra não há espelhos, nem um pequeno caco, nenhuma superfície refletora e a água, já agora, apenas lhe devolve uma sombra, um vulto sem qualquer precisão, porque se trata de água escura, esverdeada, água de rio, água de charco, sempre cheia de pequenas ondas provocadas pelo vento. As poucas pessoas que por ali andam também não lhe dizem nada sobre o assunto, porque são gente desconhecida e os desconhecidos nunca dizem nada sobre a inquietação do outro, apesar de olharem muito para o seu rosto.

O senhor Kayros passa amiúde as mãos pelo rosto, agora com barba em crescimento desenfreado. Tateia-o com a ponta dos dedos, com a delicadeza de um cego, digamos assim, e tenta recordar o seu aspeto em todos os pormenores e amplitude.

A pálpebra do olho esquerdo levemente descaída em relação à do olho direito; o nariz não é pequeno nem comprido, mas apresenta a narina esquerda mais estreita do que a direita; os lábios finos formam uma boca pequena, agora oculta atrás do bigode espigado; o lábio inferior é um pouco mais gordo do que o superior e está descaído para o lado direito, pelo que a boca no geral se afigura um pouco torta; as maçãs do rosto são pouco salientes, inexpressivas; as orelhas são de tamanho normal, embora um nadinha viradas para fora, quase a entrar na órbita do orelhudo; o queixo é curto, mais curvo do que anguloso; a cara seria pequena se não fosse compensada pela testa alta e as profundas entradas laterais no couro cabeludo; o cabelo é curto, mas agora encontra-se crescido e desalinhado.

Pese embora os constantes reconhecimentos faciais através do tato, o senhor Kayros esqueceu-se efetivamente de como é e teme não ser capaz de se auto-reconhecer quando por fim se deparar com um espelho. Se assim for, ele terá de partir uma vez mais pelo mundo fora em demanda do ‘verdadeiro espelho’, como se o ‘verdadeiro espelho’ fosse o Santo Graal e ele um cavaleiro do Rei Artur, um cavaleiro da Távola Redonda.

Sim, o senhor Kayros seria um cavaleiro do novo milénio, mas não um cavaleiro de modos intrépidos, nada disso. Antes um cavaleiro miserável sem cavalo, um D. Quixote de meia tigela disfarçado de Parsifal ou de Lancelote do Lago à moda do século XXI, um triste cavaleiro esfarrapado em busca do ‘verdadeiro espelho’, vejam só, e, neste caso, o ‘verdadeiro espelho’ faria a vez de cálice sagrado ou de pedra filosofal.

A vida de uma pessoa – pensa o senhor Kayros entre suspiros – não tem qualquer sentido enquanto a morte não chega.

Movido por estas angústias, o senhor Kayros põe-se a divagar sobre a magia inerente às fugas e, como não podia deixar de ser, começa logo a ouvir tocar ao longe, muito ao longe, ‘A Arte da Fuga’, aquela peça inacabada de Bach, o seu compositor preferido. Mas trata-se de uma mera alucinação, pois as fugas de Bach não têm nada a ver com as fugas de andar perdido no mundo.

Enfim... Olhando para si, pesaroso e desvairado, o senhor Kayros vê apenas uma fuga sem arte, uma fuga precipitada, atabalhoada, uma fuga tonta, daquelas em que o plano é traçado em cima do joelho e está sempre a ser emendado, riscado, alterado, de modo que a certa altura não se percebe nada daquilo, nem que diabo de fuga vem a ser aquela, nem porquê, nem para onde.

O senhor Kayros gostava, já agora, de ter empreendido uma fuga diferente, uma fuga pensada, premeditada, uma fuga estudada a longo prazo, construída no silêncio dos anos, uma fuga como é provável que tenha sido a do seu amigo de infância Vladimiro Rocha, pese embora a loucura que o afetava, que desapareceu em África em 2008 e nunca mais foi visto por ninguém, quer dizer, por gente conhecida, nem deu sinal de vida ou de morte, ou então, melhor ainda, uma fuga como a do senhor João da mercearia, um antigo vizinho do senhor Kayros, lá das zonas altas de Santo António, que desapareceu sem deixar rasto há mais de vinte anos.

Essas, sim, é que foram fugas a valer!

E foi então que eu acordei e ao acordar tinha as mãos postas no rosto e as mãos tateavam-no insistentemente, como se eu estivesse à procura da minha própria imagem no escuro do quarto...

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