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Artigo de Opinião

Jornalista

26/09/2024 08:00

Era uma Profissão com muito prestígio. Não era apenas um ofício, era uma arte. Existiam alguns, mas não eram muitos os que realmente eram autênticos mestres nesta área. Noutros tempos os sapatos tinham mais vida. Não eram assim tão descartáveis. Passavam de irmãos para irmãos e quando não havia outro remédio, por vezes repetiam idas ao sapateiro. Um bom conserto dava para mais umas caminhadas. Até havia uns que faziam sapatos à medida. A quantidade de sapatos em casa era escassa. Havia os “sapatos da missa” e umas botas para o trabalho ou para o dia-a-dia. Sapatilhas nessa altura era um autêntico luxo. Quase nem se ouvia falar da sua existência.

Os chamados “sapatos da missa”, escusado será dizer que tinham muito menos utilização. Só saíam quase única e exclusivamente ao domingo para a missa, ou então em casos especiais, por exemplo, para acompanhar funerais. Nessa altura, era tudo em pele, que toda a gente chamava de cabedal. As solas é que variavam e sobretudo nas botas, usava-se borracha de pneus dos carros. Era um tipo de calçado que durava uma vida. E quando começavam a apresentar alguma mazela, a solução era passar pelo sapateiro. Fui várias vezes a um sapateiro que existia na zona. Era conhecido por mestre. Era de facto alguém que se distinguia pelo seu talento, fazendo o que sabia de melhor: criar arte onde os outros viam apenas desgaste. A mim, despertava muita curiosidade e até espanto pela forma como o homem com umas ferramentas que pareciam improvisadas, cozia uma sola de sapatos ou de um par de botas.

A maior parte das ferramentas eram feitas pelo próprio. A sovela que servia para passar o fio quando cozia, era feita usando uma haste de um guarda-chuva enfiada num cabo de madeira. O furador era algo do mesmo género. Nesse tempo o acesso a ferramentas compradas não era fácil, por isso havia que improvisar. Era de facto genial - achava eu. Gostava de assistir a esse trabalho. Por entre conversas dos mais velhos e cheiro a cola de sapateiro, o homem ia fazendo o seu trabalho. Os sapatos de tanto uso, tinham tendência para desgastar a sola. Mesmo com um buraco, lá íamos usando o mais que podíamos. Até porque ficava numa zona onde ninguém via. O problema era quando chovia e aí não havia forma de evitar que a água entrasse, deixando os pés molhados. Resistíamos até onde podíamos, mas lá havia um dia que a visita ao sapateiro era inevitável. E então lá íamos nós. Na maior parte das vezes esbarrávamos na carga de trabalho que o homem tinha. Como a lista de espera era muita, tínhamos de ficar sem sapatos durante um tempo. Eram vários os consertos. Consistiam basicamente em meias-solas ou sola inteira, ou coser uma parte descosida e pouco mais. A mesa de trabalho do sapateiro era no mínimo uma coisa curiosa. Por entre martelos, alicates riscados pelo tempo, sovelas, cola, bocados de couro cortado com precisão, esperando ganhar forma de uma sola nova, existia um amontoado de calçado de forma desordenada à espera de tratamento. Sapatos de homem e de senhora. Lembro-me de lá ir deixar os sapatos e depois voltar várias vezes nos dias seguintes para ver se já estavam prontos. Era preciso esperar. Até porque o sapateiro, para além desta atividade, era alguém que também tinha outras lides. Também cuidava de animais e da terra. A atividade de sapateiro era, em alguns casos, um complemento lá para casa.

Uma profissão que pelo menos nas zonas rurais, tende a desaparecer. São as contingências dos novos tempos. Hoje em dia é quase tudo descartável. Talvez seja essa a ironia dos tempos modernos: remendamos menos, trocamos mais. Um dia, quem sabe vamos perceber que nem tudo devia ser descartável.

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