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Artigo de Opinião

5/10/2024 00:00

«Podemos aprender a trabalhar e falar quando temos medo, tal como já aprendemos a trabalhar e falar apesar do cansaço.»
Audre Lorde (1934-1992)

Escrevo, hoje, especialmente para si, que carrega no peito o peso de um segredo preso.

É aquele segredo que traz consigo a amargura de nunca saber bem se a dor que sente é a de uma explosão contida, à espera de acontecer, ou se pelo contrário, é como uma gigante bola de ferro, que nos prende e não nos deixa partir e voar.

Na verdade, quando é o caso, não interessa muito de que lado estão as grades. Não é assim tão importante saber se o mantemos enterrado em nós ou se é ele que nos enterra mais um pouco todos os dias.

O que sabemos é que todos os dias está lá e assusta-nos.

Quando acordamos, quando comemos, quando andamos por aí, quando vamos dormir, quando nos cruzamos com uma pessoa estranha, quando ouvimos passos atrás de nós. Trazemos sempre um pouco desse medo.

Por vezes é pior ainda, quando nos cruzamos com alguém que conhecemos. Será que reparou? Será que vai notar o nosso desconforto? Será que vai notar que queremos fugir?

Será que consegue cheirar o nosso medo?

Será que notou que precisamos de uma ajuda que não sabemos como pedir?

Se calhar é melhor falar pouco.

Não, não vamos falar disso. Afinal, que é que esta pessoa tem a ver com isso?

É melhor sorrir.

É isso! Forçar um sorriso, cumprimentar de cabeça, manter o silêncio.

Ou então perguntar primeiro «Como vai? E lá por casa? Nós cá vamos, andando, devagarinho. Devagarinho e certo. Não é o que diz o povo? Adeusinho. Cumprimentos. Serão entregues, serão entregues».

E vamos andando. em silêncio.

Antes que se faça tarde. Antes que se note. Antes que consiga cheirar o medo. Antes que note a lágrima que estava a começar a tremer entre o queixo e a parte de baixo do olho.

Em silêncio.

Sim.

O silêncio vai proteger-nos. Não vão ouvir a insegurança da nossa voz.

Nós somos diferentes. Vamos aguentar. Vamos sobreviver. É, nós vamos ultrapassar isto, com coragem. Em silêncio.

Não, não vou falar disto. É privado. Pri-Va-Do.

Ninguém tem de saber da nossa dor. Do que calamos. Do nosso silêncio.

Às vezes irrita-se. É assim. Mas também quem é que não se irrita de vez em quando?

É o trabalho. A vida está difícil e toda a gente tem problemas. É natural que grite. Mas nós estamos aqui para ouvir. Em silêncio. Se respondermos ainda vai ser pior.

No outro dia foi uma estalada. Não estávamos à espera. Ficámos imóveis, em silêncio. Mas pediu logo desculpa. Gosta de nós. Que seria da sua vida sem nós?

É, vamos andando, vamos andando.

Ultimamente anda pior... As coisas não estão fáceis, mas estamos cá para ouvir os desabafos. É ouvir e calar.

Mas gosta muito de nós. Diz isso muitas vezes, em casa, nos jantares com casais amigos, até no Jantar de Natal do trabalho, com a direção e tudo!

Não pode é beber muito, faz-lhe mal. É por causa dos remédios que toma. Fica irritável, já se sabe. Mas se ficarmos em silêncio acaba por passar. Passa sempre.

Diz que gosta muito de nós.

Nós acreditamos, queremos acreditar.

E ficamos em silêncio. Invisíveis.

O que é aquela coisa de metal, a brilhar, que traz na mão?

...

...

Não, o silêncio não nos protege.

Volto a Audre Lorde e ao que escreveu há já mais de quatro décadas, «e enquanto esperamos em silêncio por aquele luxo final de nada temer, o peso desse silêncio asfixia-nos».

O teu silêncio não te protege.

* - Linha de apoio às vítimas de violência doméstica 800 202 148; Emergência 112. Emergência Social 144. Estas linhas funcionam 24 horas e são gratuitas.

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