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Artigo de Opinião

GATEIRA PARA A DIÁSPORA

19/12/2023 05:00

Em Estrasburgo (França), a «capital do Natal», há um mercado alternativo, onde se encontram, entre outros, quiosques de artesãos locais, de comida biológica de produtores em circuito curto, e de roupa em segunda mão e/ou certificada. Neste mercado, comemos a tarte flambée alsaciana e falámos com o senhor que a cortava como Mondrian, com um centro perfeito e em partes simétricas. Lembrei-me de, há muitos anos, ter ficado algum tempo num supermercado de Los Angeles a ver um senhor – da América do Sul ou Central – a colocar as compras de quem servia nos sacos como num quadro de Mondrian. Estes senhores, bem como o senhor Hirayama – personagem principal do filme de Wim Wenders, Dias Perfeitos, – cujo nome parece também ser uma homenagem ao grande mestre do cinema japonês, Yasujiro Ozu, que este ano celebraria os seus 120 anos – põem quanto são no mínimo que fazem, como escrevia Ricardo Reis. O hábito, que é o meu, de ficar até ao finalzinho das coisas, de ver como é depois de a realidade encenada ter acabado, ver o que vem depois do fim – nos espectáculos, numa celebração religiosa, no cinema, na vida –, acarreta muitas vezes agradáveis surpresas. Já depois de todo o genérico final, pôde ver-se no filme de Wenders a explicação da palavra japonesa «Komorebi» – boa sorte em traduzir isto, inteligência artificial – para quando o vento e a luz se encontram com as folhas de uma árvore, aquele momento único que Hirayama fotografava com o seu aparelho analógico, sobretudo na pausa para o almoço, antes e depois de ter limpado as latrinas públicas do bairro de Shibuya, em Tóquio, desenhadas por arquitectos.

Ao saber que o poeta palestiniano Mosab Abu Toha tinha sido detido em Gaza, a sua editora – e uma livraria que era ponto de encontro para os intelectuais da Costa Oeste dos EUA, City of Lights (Cidade das Luzes), em São Francisco, e co-fundada por Lawrence Ferlinghetti, um beatnik – disponibilizou o seu último livro gratuitamente: Things You May Find Hidden in My Ear: Poems from Gaza (Coisas que podes encontrar escondidas no meu ouvido: Poemas de Gaza). A melhor resposta a um artista detido é alforriar a sua arte. No poema com que começa o livro, Palestine A-Z, escreve o seguinte: «“Sou” é o verbo de ligação que sucede a “eu” no presente quando eu já não estou presente, quando eu estou destroçado.» (tradução livre).

No mesmo dia em que se soube que José Tolentino Mendonça ganhara o Prémio Pessoa – e fiquei contente pela pessoa do prémio – também se conheceu o vencedor do Goncourt des détenus, uma variante do consagrado prémio literário francês, Goncourt, em que os membros do júri são reclusos. Este ano o prémio coube a Mokhtar Amoudi pelo seu romance Les conditions idéales (As condições ideais), que ainda guarda cartas de amigos escritas da cadeia. Não se podem enclausurar as palavras, mesmo que seja em verso.

Em dias de concertos natalícios, fui a um concerto pela paz – e que melhor maneira de celebrar o Natal? Aí, entre outras canções, cantou-se a Marselhesa da Paz – uma variante não belicista do hino nacional francês – por Paul Robin, de 1893. O conhecido refrão transformou-se em «Plus d’armes, citoyens!/Rompez vos bataillons!/Chantons, chantons,/Et que la paix/Féconde nos sillons!» (Chega de armas, cidadãos!/Desmobilizai os vossos batalhões!/Cantemos, cantemos,/E que a paz/ Fecunde os nossos sulcos!).

Na ocupada Belém, como outrora, os palestinianos cristãos decidiram suspender as celebrações de Natal enquanto o judeu menino está deitado, coberto com um keffiyeh, por entre os escombros do presépio palestiniano. Que o Natal possa fecundar cada um de nós e que nos saibamos dar a Paz, e as mãos!

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