Os lugares são gente. Ainda não conheci um lugar, por mais recôndito que seja, que não tenha uma respiração humana, que não tenha a memória de quem os habitou e percorreu.
Os lugares morrem quando morre a humanidade que neles existia. Os lugares só continuam vivos quando essa pulsão de gente é plena, forte e constante.
Os lugares mortos são gente que deixou de respirar, são lugares onde já não ecoa um passo certo no chão da casa ou nas pedras do caminho.
Os lugares vivos são aqueles onde ainda se acende o humano e tudo o que nele habita. As horas do dia, a luz que se altera na pele, a felicidade do que ainda não morreu e continua vivo com a força sempre espantada do que persiste em respirar depois do silêncio, depois da dor indizível.
Nos lugares vivos estão as memórias, a amizade, os cães, os pássaros e as árvores que nos lembram sempre essa verticalidade contra o céu e a persistência de dançar com o vento.
Os lugares são gente e as árvores somos nós. Sim, nós que sobrevivemos aos ramos cortados, até a algumas raízes arrancadas à força. Até à violência de nos doer o tronco, os ramos e as folhas. Até à profunda dor de sermos arrastados com a água. Ainda assim, nessa espécie de apneia, descobrirmos que conseguimos respirar sob a água tal como nos ensinaram os que morrem, os que morrem neles e em nós. Sobretudo em nós.
Estranha lição essa, a dos mortos, sempre mais vivos do que a vida toda que resta depois. Sempre mais vivos do que a respiração que continua como coisa que não se esquece. Uma bicicleta no peito, um mecanismo que guarda a velocidade e a travagem brusca. Os pés a pedalarem exatamente no centro do corpo. E somos ainda um mecanismo que funciona apesar da falha, da falta, do abismo sobre a cabeça e o coração.
Somos ainda um mecanismo que respira como quem avança, como quem ainda não esqueceu o ritmo, como quem ainda guarda a música e as palavras.
Somos ainda um lugar que é gente, um lugar vivo. Inesperadamente vivo apesar da tragédia que matou já tantos lugares, apesar da tragédia como uma inundação que se estende na paisagem.
Os lugares são gente morta e viva e por essa pulsação se mede a felicidade e a tristeza.