O gajo saiu à hora certa do escritório e na paragem o ambiente estava tranquilo, apesar de haver muita gente na fila. A camioneta atravessou a cidade pela marginal e ele notou que a névoa fazia o mar parecer demasiado perto, como se fosse um mar artificial, e a impressão acentuou-se devido à chuva miudinha que começava agora a cair e na rua viam-se corpos vagos, húmidos e fugidios que faziam lembrar histórias fantásticas e depois veio a esplanada deserta, o cais e o porto ao fundo, outra esplanada deserta, os mastros dos veleiros a baloiçar na marina e, de repente, apareceu a parede do túnel e o túnel era a sua vida de merda e ele precisava de falar com alguém sobre a merda da sua vida, precisava de falar com o seu único amigo.
A igreja era grande e tinha duas torres e o adro era amplo e a casa do padre ficava ali mesmo e tinha um pequeno jardim à frente e a porta e as janelas da casa estavam fechadas e tudo no lugar estava fechado por causa do inverno. A chuva estancara, mas a encosta permanecia enegrecida e o nevoeiro cobria o cume das montanhas e quando o gajo bateu à porta a noite estava quase a chegar.
O padre abriu.
– Foi sem querer – disse o gajo pasmado, com os olhos pregados num ponto inexistente da sala.
– Queres um licorzinho? – Perguntou o padre e já enchia o copito de cristal e depois pousou a garrafa delicadamente no pequeno tabuleiro de mármore e cruzou os braços e disse:
– Antes de Deus, muito antes de Deus, estão os caminhos que nos levam até Ele.
O gajo mostrou-se indiferente e respondeu que ia dar em louco e bebeu o licor de um só trago e era licor de tangerina muito forte.
– Vou dar em louco! – Insistiu.
– Ninguém é louco diante de Deus – disse o padre.
Fez-se silêncio entre os dois e depois o padre sorriu e o sorriso espalhou-se por todo o seu corpo, porque não provinha apenas dos lábios, mas também dos olhos azuis perdidos no rosto franzido e dos cabelos brancos e das mãos enlanguescidas, o sorriso provinha do fundo da alma e do princípio da eternidade, pelo que o gajo só podia permanecer em silêncio, como se dormisse após um grande esforço – o esforço de viver.
– Eu sei que amas os teus filhos e a tua mulher – disse o padre.
– Os filhos sim, sem dúvida! – Disse ele. – A mulher não.
– Calma – disse o padre. – Calma.
Não era apenas a sua voz de velho que ensinava os caminhos de Deus que o redimia, nem sequer eram os ensinamentos que o redimiam, até porque ele não acreditava em Deus, há milhares de anos que não acreditava em Deus, mas era sobretudo estar na presença da amizade incondicional e respirar o mofo da sala e sentir o cheiro dos móveis antigos e o perfume dos licores caseiros e reconhecer no espírito das coisas a vida eterna de tudo o que já não existe.
Isto era liberdade e as palavras eram ditas sem deformação.
– Foi sem querer – disse o gajo.
E então contou a verdade, como sempre fazia quando visitava o padre, e a verdade era o fim do seu amor, a verdade era a traição. Andava agora com outra em segredo, uma gaja mais nova e boazuda que se fez a ele com uma sofreguidão inexplicável, dizia ele, considerando que da sua parte não tinha dinheiro para pagar luxos e se apresentava já quase velho e irreversivelmente barrigudo, de modo que agora tinha uma vida dupla e já não amava ninguém, nem a mulher, nem a amante, nem sequer amava o passado feliz com a mulher, nem o arrebatamento inicial com a amante, aquele seu corpo delicioso e o sexo desenfreado, tão pornográfico, nem a terrível sensação de pecado que o contaminou e viciou, já não amava o segredo nem o perigo de ser descoberto e, no entanto, não conseguia parar, estava enredado, envenenado, perdido num labirinto e quanto mais tentava sair, mais se afundava na mentira em que se tinha transformado a sua vida.
– Vou dar em louco!
– A rotina mata – disse o padre.
Depois pegou na garrafa e encheu outra vez o copo, agora com uma dose mais generosa, quase a transbordar. Encheu também um copo para si e disse:
– A rotina salva.
E ficaram os dois a conversar até altas horas da noite.