Em Setembro, em França, é a rentrée, o recomeço não só das aulas mas também do regresso ao trabalho, e uma certa indolência no ar rarefaz-se, retomando as novas grelhas de programas de televisão e de rádio, e a vida retoma o seu curso. Na televisão pública francesa, vi uma jovem activista climática, de seu nome Camille E?tienne, que nos interpela com a importância da coragem de ter medo - sobretudo relativamente ao planeta e ao que lhe andamos a fazer. Contudo, é questionada sobre se a democracia e o medo farão bom casamento ou se o medo é mais propício a outro tipo de regimes.
Ainda num canal público, mas desta vez franco-alemão, Arte - a talho de foice, que bom seria se a língua portuguesa também fosse contemplada num canal cujo sítio electrónico e legendas já existem em inglês, espanhol, polaco e italiano, além das duas línguas dos países fundadores -, ouço pela primeira vez Franck Courtès falar da sua impressionante vida, e, por conseguinte, do seu impressionante livro À pied d’oeuvre. Franck era um fotógrafo de renome, que havia privado com Robert Doisneau e que retratou pessoas célebres. A certa altura, e dado um início de depressão, numa altura em que ainda não falávamos muito de saúde mental, quis mudar de vida. Precisava de escrever, mas as contas ainda lhe batiam à porta e, então, trabalhou, e trabalha, como manoeuvre - categoria abaixo do operário qualificado - ou «operário invisível» e precarizado, e desde 2020 recebe o rendimento social de inserção. Este último livro é publicado na prestigiosa série branca da editora francesa Gallimard, e recebe cerca de €1.5 por livro vendido. De uma vida confortável para uma vida de subsistência, de trabalho encontrado em plataformas, que conseguiram recuperar os «disfuncionais» do mercado; não por acaso, os condutores de TVDE em Estrasburgo são chechenos, em Joanesburgo, migrantes africanos - muitos do Zimbabué -, dizem-me que, em Lisboa, brasileiros, e por aí vamos. Há muita coragem nesta sua vida da escrita, e não é a do medo. Franck diz que o que seria desrazoável teria sido abandonar a escrita.
Na rádio francesa, falou-se da inteligência da mão, a confiança que a mão na mão sustenta, a arte manual que a medicina deve ser, um fisioterapeuta dizia que as suas mãos iniciavam o diálogo, e um médico que o toque era uma co-presença. Quanto te toco, existo em ti. No amor, tocamo-nos mesmo sem gestos e existimos mesmo sem toque. Franck cria, enquanto manouevre, e enquanto escritor, com as suas mãos, e, assim, existe.
No mesmo Parlamento Europeu onde em 13 de Setembro foi pronunciado o discurso do Estado da União, realizou-se o Festival Literário Bibliotecas Ideais. O artista Abd al Malik veio falar do seu livro sobre a sua amiga, e musa de Saint-Germain, Juliette Gréco. Contou-nos que Juliette fora convidada para ir cantar no Chile de Pinochet - estamos a celebrar os 50 anos do golpe de Estado -, mas foi-lhe dito que não poderia cantar a canção antimilitarista Le Temps des Cerises (O Tempo das Cerejas). Cantou-a à mesma. Militares foram buscá-la ao palco e puseram-na no primeiro avião para Paris, mas a canção ficou. Esta é uma canção de esperança, de «sol no coração». No rescaldo da noite eleitoral madeirense, há que reencontrar a esperança, e transmiti-la a quem vota por medo, que nunca é bom conselheiro.