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Artigo de Opinião

GATEIRA PARA A DIÁSPORA

5/07/2022 08:00

Fomos participar no fim-de-semana em festa do Museu Unterlinden. Celebrava-se o fim do restauro do Retábulo de Issenheim (1516), uma obra-prima, que começara em 2018.

No comboio, viam-se as montanhas dos Vosges à direita e, à esquerda, devido ao declive e ao tempo não víamos a Floresta Negra, o que só comprova que mesmo o que não é visível, está lá. Como o Sr. José. Participámos numa visita dançada pela coreógrafa e dançarina Aurélie Gandit, que «comenta[va] e interpreta[va] [esse retábulo] pelo texto e pela dança […]». Na Idade Média, uma das pragas que dizimou populações foi o chamado «fogo dos ardentes» ou «de Santo António» com origem numa intoxicação alimentar que provocava lesões irreversíveis, incluindo a gangrena e estados alucinatórios. Recorreu-se a Santo António para que pudesse valer as populações e como os Antonianos também acreditavam na cura pela arte encomendaram a Nicolas de Haguenau (escultor) e Grünewald (pintor) o famoso retábulo. No último painel, o calvário, - que, na disposição original, quando aberto dava a ver a «Última Ceia» - a dançarina deixou-nos vir, incautos, e quando chegámos disse-nos «agora podem virar-se (apesar de já sabermos que os últimos serão os primeiros). Então, a Clara, a minha filha mais nova, aproximou-se da dançarina. Esteve à distância de um abraço. A artista descalçara-se e vivia (mais do que reproduzia) algumas das figuras daquele calvário. Fazia a dança das palmas das mãos - como me confidenciou - e aí, de repente, como se fosse a primeira vez, vi Cristo: era uma mulher e dançava, e nada mais interessava (não sei, contudo, o que pensaria disto a maioria do Supremo Tribunal dos EUA).

Vi também nela a arte. Além disso, vi a Clara, ainda não baptizada, quase tocar na arte, e no/a Cristo. Foi uma experiência de uma vida. Descalçou-se para nos fazer ver melhor uma parte do corpo que está quase sempre descalça: as mãos, e a importância destas naquele retábulo, e nas nossas vidas.

Também tínhamos ouvido, na despedida do programa Boomerang na rádio France Inter, a dança ser dita, e, uma vez mais, a importância das mãos. Não há pandemia - ou doença ardente - que nos tire isto, a força das nossas mãos, sobretudo quando se unem com outras, desconhecidas até então. No final, falámos da Ucrânia, da importância de quando tudo isto acabar sermos curados pela arte, que por enquanto também nos vai ajudando a sentir, e a viver, o invivível. Agora, volto ao início: corri, apanhei o autocarro, e estava à espera da impressão dos bilhetes de comboio quando fui interpelado por Niko, de Kharkiv, pois o seu cartão bancário não era aceite pela máquina. Paguei e ele deu-me o dinheiro, mas vinham quarenta cêntimos a mais, que não pude devolver (nem esses cêntimos nem tudo o que devo à Ucrânia).

Devia ter trazido o porta-moedas que o Sr. José me ofereceu, depois de lhe ter perguntado onde adquirir um como o dele, que usava na sua abelhinha (táxi, na Madeira) para dar o devido troco aos seus clientes. O Sr. José nunca ficaria a dever quarenta cêntimos a ninguém. Não sei se a Paula Rego tinha o dinheiro certo nesta última corrida que fez com ele (faleceram no mesmo dia), mas o que sei é que ela não poderia ter desejado melhor companheiro de viagem. O Sr. José é um homem bom (e nesta frase cabe todo este artigo, e muito mais). Até um dia destes.

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